1981

Sendo uma pessoa nostálgica, de vez em quando gosto de dar rolezinhos virtuais pelos meus antigos bairros com a ajuda do Google Earth. Subo ladeiras, atravesso ruas, escolho direções em encruzilhadas, revisito esquinas, comparo as imagens recentes com as que tenho na memória e não existem mais.

A casa cuja fachada recoberta de ladrilhos pretos a fez ganhar o apelido de “mausoléu”. A laje da casa da amiga onde nos sentávamos com uma garrafa de coca cola, um maço de cigarros e todo o tempo do mundo para desperdiçar sem dó uma tarde de sábado olhando o movimento da rua. A padaria onde meu pai me levava para comprar o sorvete dominical, com a banca de revistas na porta onde eu contava moedas para trocar por envelopes de figurinhas. A padaria que tinha “aquele pão gostoso” que não tinha nas outras. A padaria mais longe, que ficava perto demais de um lugar onde não se devia ir.

O supermercado que antes era fábrica de açúcar ao lado da escola e que enchia as nossas tardes de “cheiro de doce”. O muro pintado em comemoração à copa do mundo de 1986 (a primeira de que me lembro) e que continua da mesma cor, o verde anêmico da tinta misturada com água pra render que desbotou mas manteve o desenho. O portão de madeira caindo aos pedaços atrás do qual eu fui implorar uma vaga na quadrilha de são joão da rua (e não consegui; boa argumentação, péssima dançarina). A casinha quadrada e (ainda) amarela onde pulei corda no quintal de uma amiguinha da escola que tinha vergonha de levar colegas em casa porque a mãe vendia sacolé e o pai abusava do álcool. A calçada onde um grupo de pessoas revezou um binóculo para ver gente morta pendurada na torre de energia elétrica (essa era a realidade da baixada nos anos 80, cortesia da Falange Vermelha).

A lanchonete que foi locadora de videogames e alvo de muitas peregrinações vespertinas atrás daquele jogo que vivia alugado, o pet shop que foi vendinha onde íamos comprar cocada, bananada, dadinho e a lendária pipoca do saco vermelho, o supermercado que foi loja de material de construção onde meu dente de leite caiu dentro de um ralo, o condomínio de sobrados que foi o terreno baldio onde eu aprendi a andar de bicicleta, o bar que foi barbearia onde meu pai cortava cabelo comigo sentada no colo, a “casa do lobisomem” que abrigava um senhorzinho taciturno e bastante peludo que “sumia em noite de lua cheia”, o endereço da menina mais bonita da rua (não era o meu), as grades do portão da casa onde eu nasci (e por onde eu enfiava a mão para bater nas crianças na calçada). As lembranças são infindáveis.

Minha mãe tinha “cisma” com algumas ruas. Bastava ter ouvido falar de um crime que teria (ou não) acontecido ali 10 anos atrás e aquela área era permanentemente catalogada na pastinha mental “LUGAR PERIGOSO” e banida para mim. “Se eu SONHAR que você pôs os PÉS na rua da caixa d’água você NUNCA mais sai de casa!”, o tom ameaçador combinando com o dedinho em riste e destoando da minha cara de deboche. Pois a melhor amiga da minha mãe morava nessa mesma rua, que por acaso estava liberada justamente até a casa dela. Já que ninguém sabia as coordenadas geográficas exatas do crime, por que não empurrá-lo alguns metros acima? How convenient.

Falando em crime, tem também a avenida de casas onde mataram um homem e nós crianças ficamos sabendo na hora em que saíamos pra escola. Imagine um bando de ten years olds se acotovelando e fazendo fila por trás de uma mureta a fim de assistir policiais jogando água em cima do cadáver rijo, o sangue diluído se espalhando pelo chão de cimento. Eu nunca soube exatamente o que havia acontecido/estava acontecendo ali, mas a imagem jamais saiu da minha memória. E parecidas a ela ficaram outras, algumas envolvendo meninos que cresceram comigo, que brincaram de pique esconde comigo, que jogaram queimado no meu quintal, com quem eu dividi ficha de fliperama em botequins e sacos de pipoca em tardes de cosme e damião. Meninos interrompidos.

No começo desse ano a mãe de um deles me adicionou no facebook. Lembrei dela três décadas mais nova: moça pálida sumindo dentro de amplos vestidos estampados, saía pouco e mal penteava o cabelo – mas naquela época depressão tinha outros nomes. Quase todos feios. Perguntou pela minha mãe, sobre a minha vida e quis saber se estou feliz.

“Você ainda lembra do meu filho?”

Lembrava. E contei daquela noite na escada da casa dela onde meu tamagoshi morreu, ele consertou meu chinelo e me ensinou a jogar brick game. Ele era bom com essas coisas, disse ela. Era sim. Eu lembro. E lembrei de outras coisas, de pequenas anedotas desimportantes de criança mas que fui contando, inflando significados e esticando dimensões, sendo o Google Earth possível para uma saudade que não podia ser satisfeita por um mapa na internet. Uma nostalgia que requer testemunhas, que precisa desesperadamente de uma garantia de que coisas que não estão mais aqui existiram e deixaram marcas.

Pintaram o portão preto da casa onde eu nasci.
Ele agora é prateado, mas as grades de ferro retorcido são exatamente as mesmas.

Before the golden hour.

meio dia, sol rachando. não era o melhor horário de pra uma sessão fotográfica. eu sugeri aguardar o fim da tarde e o dourado suave da “golden hour” – mas a moça só tinha esse tempo disponível entre as doze e duas da tarde e descolou uma permissão pra fotografar num jardim privado em notting hill, que normalmente só pode ser apreciado pelos sortudos donos das casas que o rodeiam. tínhamos que aproveitar. às seis da tarde eles chegam do trabalho e querem curtir o playground comunitário dos ricos, sem blogueiras fazendo poses forçadas embaixo de cerejeiras.

fora a câmera profissional que ela ganhou do mecenas (aka. papai) nós não temos refletores, tripés, medidores de luz nem nada do tipo. a rigor não temos nem mesmo uma fotógrafa; só alguém (eu) para apertar o shutter da câmera, porque também não temos controle remoto. ou seja, as fotos saíram uma porcaria e teremos que refazer. de preferência super cedo ou mais tarde, com uma luz mais amigável, porém sem o jardim bonito porque o privilégio (e a floração das cerejeiras no sul da inglaterra) já expirou.

notting hill é uma graça na primavera. as casinhas coloridas com os cachos de clematis e wisterias escorregando das fachadas, mas também com suas moradias sociais e imigrantes (em trajes e tons de pele tão variados quanto a escala pantone das casas) servindo peixe frito, samosas e dim sums pelas barraquinhas de golborne road. paramos no pizza east onde ela comeu salada (vegetariana) e eu a barrinha de pipoca com caramelo do pret a manger que tinha comprado perto da estação de ladbroke grove. rimos de grafites engraçados, de madamas comendo pizza com garfo e faca e de uma garotinha de uns três anos que xingava feito papagaio de boteco porque a mãe (morta de vergonha) se recusava a comprar-lhe sabe-se lá o quê.

lembrei de uma ocasião, muitos e muitos anos atrás, onde eu tinha essa idade e chorava muito dentro de um ônibus e xinguei (no volume dez) de um nome bastante feio uma criança com a qual a minha mãe havia me comparado. “olha lá a menininha bonita te olhando, ela é bonita porque não chora, você é feia”. chocada pela afronta, calei-me instantaneamente e só abri a boca de novo para vociferar profanidades. minha mãe abaixou a cabeça e desceu no próximo ponto, mesmo que estivéssemos a quilômetros de distância de casa. seria razoável acreditar que ela teria aprendido a respeitar minha individualidade e nunca mais tentado me humilhar ao me comparar com alguém. mas a verdade é que quem aprendeu a lição fui eu: xingar em voz baixa para não ter que voltar pra casa andando.

na volta, dentro do metrô, levanto os olhos do celular e observo as torres de canary wharf reluzindo feito pepitas de ouro bruto na linha do horizonte. e enfim se fez luz. perfeita.

(essas fotos não foram feitas com a câmera profissional e sim com a minha, que comprei no natal e veio com duas lentes incluídas no preço. elas também teriam saído melhores na golden hour, mas é o que tem pra hoje, senhores.)

Smells of nostalgia.

Três dos meus perfumes preferidos, os que eu compro novamente sempre que acabam.

carolina herrera: eu lembro de usar esse perfume numa cidade onde eu nunca tinha estado antes. e da sensação de estar lá completamente sozinha, pulando na cama do hotel barato (e cheio de baratinhas minúsculas; i used to be fearless), feliz com a independência e a liberdade de poder ir onde eu quisesse, fazer o que eu quisesse. glorioso. a parte engraçada é que eu nunca recebi tanta atenção masculina na vida. foi meio estranho, mas não de todo ruim porque pelo menos eles foram bastante educados e simpáticos – um mundo de diferença das cantadas agressivas e grosseiras a que eu estava habituada.

amarige: ganhei esse de um namorado. ele estava indo viajar e eu com raiva dele por algum motivo aleatório. perguntou se eu queria alguma coisa da europa; eu grunhi um palavrão. aww. such a sweetie. ♥ mas a raiva já tinha passado quando ele voltou, duas semanas depois, e eu me arrependi de não ter pedido nada legal. ainda assim ele tirou da mala algumas coisas bonitas para mim e uma delas era um frasco de amarige. “por algum motivo esse cheiro me lembrou de você”. aww. such a sweet talking bastard. (e mentiroso, porque na época o único cheiro que faria alguém se lembrar de mim era o de roupa suja mofando no cesto).

dolce vita: alguém lembra daquelas revistas em série com objetos “colecionáveis”? que começavam custando baratinho, mas depois você tinha que pagar um rim para conseguir as outras peças (distribuídas em 360 edições…) necessárias para montar o bagulho? eu fiquei muito feliz quando lançaram uma de miniaturas de perfume; não precisava “montar” nada e você comprava apenas as edições que quisesse. não comprei muitas porque pobre, mas esse foi de longe o meu preferido: um aroma floral, porém spicy e dramático, diferente de qualquer outro. foi o primeiro frasco de perfume “bom” que me dei de presente assim que pude.

Throw Back Thursday: Outros Novembros

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outono no lake district.

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preguiça e calor (e saudade) em jersey.

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wedekindstrasse, a minha rua em 2007 (list, hannover).

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eilenriede no outono e alguns dos (muitos) sapatos que eu comprei em hannover.

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gatinho tortoiseshell num túmulo do pere lachaise em paris.

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londres: um dos meus prédios preferidos (adoro as janelinhas vermelhas e as sacadas com grade de ferro cada apartamento) e gatinho curtindo o sol em columbia road.

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um dos hobbies que encontrei para passar o tempo em hannover (e que me ajudou a entender e apreciar os longos meses de inverno) foi uma tentativa de modelismo. eu comprava os kits e montava em casa com uma cola fedorenta que derretia o plástico se a gente não tivesse cuidado. essa é uma estação de trem, mas também havia supermercados, igrejas, puteiros e cemitérios (as pinkys estão off-scale e fazendo figuração de intrometidas).

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e quando acabava a luz no meio da brincadeira mas eu não queria parar: velas da ikea num egg cup. keep light and carry on.

Sobre aniversários (e macacos).

Sempre tive um crush naquele macaquinho mascote da Kipling, desde quando levava minhas pernas pré-adolescentes para bater no shopping, lanchar junk food e fazer pesquisa de preços. Chegando à conclusão de que até mesmo a bolsinha de lápis custava mais do que a minha mesada permitia, perguntei à vendedora se podia comprar só o macaco. Ela riu, me deixou de lado e foi atender outra pessoa. Fosse hoje, plena era das redes sociais enquanto ferramentas de bullying reverso, eu faria um textão indignado no facebook que ganharia 30.000 compartilhamentos pedindo boicote e quiçá provocaria a demissão da funcionária metida. Mas em 1992 os únicos cursos de ação possíveis eram, a saber:

a) sair da loja, ganhar na loto, voltar sacudindo quinze sacolas da Pakalolo ou Cantão e ter o meu momentinho Julia Roberts em Pretty Woman gritando “MISTAKE! BIIIIG MISTAKE!”

b) sair de loja de orelha murcha, voltar pra casa e assistir Pretty Woman chorando dentro de um pote de sorvete.

Pelo menos o sorvete era Kibon.

Passei uns anos desenvolvendo um certo odinho socialista àquele primata pedante e a tudo o que ele representava; nos meus delírios proletários eu jogava uma bomba atômica em cima da loja e o macaco dentro de uma jaula de tigres de pelúcia famintos. Mas ainda bem que a gente não é adolescente pra sempre e a maturidade me trouxe um emprego (argh) e um salário no fim do mês (urrú) – uma pena que na época meus principais interesses atendiam pelos nomes de Antarctica, Brahma, Original (e ok, Bavaria depois do dia 20) e bares levavam quase todo o meu dinheiro. E depois que passei a bolsas “adultas” eu acabei empurrando a idéia do macaquinho para o fundo da gaveta de desejos reprimidos da infância.

Até agora:

O batom é reposição de estoque porque o meu estava no fim e eu peguei de graça com o meu cartãozinho de fidelidade da Boots; que mun-rá abençoe muito essa drogaria, amém. Respectivo me trouxe esse perfume de Gibraltar.

E assim começam as celebrações pré-aniversário da Lolla, sem facada no bolso mas com muito amor, bolo, cheirinho de rosas e macacos de pelúcia – no caso macaca, que atende pelo singelo nome de Melissa.

Welcome home, Mel. Not a day too soon.
Antes tarde do que nunca. ♥

Aleatórias

Crianças mal saídas das fraldas já escolhendo o que querem vestir. Eu deixei essa decisão nas mãos de costureira da minha mãe até uns 10 anos de idade e vestia o que ela comprasse/fizesse (imagine saias modelo “balonê” e cópias de roupas do Bicho Comeu, a grife infantil da Xuxa) ou o que o meu pai ganhasse no trabalho (logística de uma empresa de transportes): camisetas com propagandas da Texaco, Pirelli e Castrol.

Lembro que mamãe se recusou a pagar pela camiseta do uniforme de educação física (“é só uma camisetinha pra suar e sujar, qualquer coisa serve!”)  e ficou enchendo o saco da diretora da escola, que resolveu se poupar da fadiga e deixou que eu fizesse as aulas com camisetas genéricas. O professor fanfarrão passou a me chamar de POSTO IPIRANGA ou MISS TEXACO em homenagem às mais usadas. Minha mãe ficou putíssima quando descobriu, mas eu não liguei pro bullying. Afinal eu podia usar uma camiseta diferente toda semana, enquanto as outras crianças cujos pais se curvaram ao capitalismo tinham que repetir brusinha. Vitória do proletariado (brought to you by Pneus Michelin).

Papai ganhava muita coisa legal. Lembro particularmente de um conjunto cinza de plush super macio, que eu adorava usar – e usei até quase se desfazer. Outro tesouro eram os livrinhos RODAS, uma edição capa dura promocional/comemorativa contando a história do automóvel e do automobilismo através de charmosos textos curtos e ilustrações bacanas. Devorei esses livros de cabo a rabo centenas de vezes e aprendi muita coisa; inclusive que o nome “Mercedes” veio da filha francesa de um tcheco que curtia tudo que fosse da Espanha e deu um nome espanhol à menina – mais tarde usando-o pra rebatizar carros Daimler na França (já que depois da ocupação nazista ninguém ia vender nada com nome alemão).

Comecei falando de roupas, terminei falando de carros. O título do post não poderia ser mais apto.

Ano novo, agendas novas:

A maior tem datas e é para journalling, a segunda é na verdade um caderninho que eu pretendo usar como planner – mas ainda não sei se vai ser esse ou algum outro entre as centenas que tenho em standby nas gavetas, esperando uma chance. Eu devo ter mais cadernos do que anos de vida pela frente para usá-los.

Ansiosa por usar também essas sticky notes fofas de gatinho que achei na drogaria Rossmann em Hannover. ♥

Apesar da luz azul do restaurante deixar toda a comida com cara de vômito eu queria declarar amor pela bandeja de aperitivos do indiano local.

Lembrei que não postei o meu resultado do meme “Best Nine” do Instagram em lugar algum. Taí: cores, plantas e lovely London.

13 anos hoje.
E sempre que ouço alguém dizer que todo policial é uma pessoa inerentemente má, cruel e violenta eu lembro de você e de que felizmente toda regra tem exceções.

Thank you for everything and rest in peace.

Aleatórias de sexta

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Nos anos 90 no Brasil se você fosse homem e não curtisse bermudão, tênis com meia e bonê então você era gay. Isso não faz o menor sentido. Lembro quando meu melhor amigo apareceu com uma camisa de listras finas cor de rosa e foi recebido com bullying corretivo pra ir “colocar blusa de homem”.

Isso me deixava confusa porque os gays que eu conhecia não usavam “uniforme de gay”; na verdade eram os rapazes hétero que aderiam a um código de vestimenta extremamente rígido, como se tivessem medo de passar a mensagem errada. Sempre achei que viver assim, com pavor eterno de que alguém questionasse a sua sexualidade com base em coisas tão aleatórias quanto a cor da sua camiseta era estressante demais.

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Boa parte das minhas roupas era costurada pela minha mãe; o resto vinha de liquidações de lojas de departamento ou bazares de igreja e às vezes customizadas por mim. Eu gostava da idéia de ter uma peça que era só minha, de ver o meu dedo no design do que eu vestia. Só que isso ia totalmente na contramão do conceito de moda das outras mocinhas suburbanas como eu: usar o que todo mundo estava usando. Nunca entendi qual era a graça.

Não que esse tipo de coisa inexista por aqui, mas pelo menos as tribos são mais variadas. E mesmo que alguém desaprove ou ache graça do que você veste quase ninguém ousa comentar ou olhar feio caso você decida se expressar de maneira diferente. 2015 e em pleno Rio de Janeiro as pessoas ainda acham graça nas minhas meias, nos meus sapatos, chapéus e bolsas – e fazem questão de me informar disso. Sim, até estranhos. Principalmente eles.

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Por que estou dizendo tudo isso? Ontem na rua eu vi uma senhorinha de meia calça vermelha, sapatinhos de fivela amarelos, um vestido azul escuro esvoaçante e cabelos rosa pastel presos num coque. Eu tentei seguir e fazer uma foto para guardar na memória aquela inspiração mas a tarde já ia longe, as pessoas se embolavam umas nas outras entrando em seus respectivos metrôs e acabei perdendo de vista aquele farol colorido iluminando a minha hora do rush.

Antes disso um menininho no colo da mãe apontou para a velhinha em technicolor: “MOMMY, HER HAIR! IT’S LOVELY!” Ela virou-se, deu uma risada e um aceno antes de desaparecer por trás de uma nuvem de ternos azul marinho e blazers feitos sob medida em Saville Road. A sola de borracha das maryjanes, ao contrário dos saltos agulha, não martelavam “plic, plec, plic, plec”. Ela seguiu seu caminho sem fazer ruído, como se flutuasse. She was lovely indeed. ♥

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E agora senta (ou foge) que lá vem aquela modalidade de mimimi cheirando a creme anti-espinhas que eu devia ter deixado lá na quinta série, porque facepalm, cê já deveria ter matado esse chefe e passado dessa fase, Lolla. Mas enfim. Eu geralmente não ligo pra ser importante na vida dos outros; meus melhores amigos ficam semanas/meses sem fazer contato, e quando nos encontramos continuamos melhores amigos. Mas o abraço especial de hoje vai pra quem te aluga quando precisa de apoio moral pra encarar uma situação/evento difícil ou tedioso, mas logo que chegam os Amiguinhos Coolcê tá dispensado. Note que os Amiguinhos Cool nunca estão disponíveis para ajudar naquelas situações tediosas porque, sendo cool, eles obviamente têm coisa melhor para fazer com o tempo. Não. Para isso serve você, o Panaca Útil.

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Tá tudo bagunçado de novo porque, como alguns de vocês já viram em outras redes sociais, tô mudando tudo de novo. E não será a última vez, porque meus ataques de “quero mudar tudo) são cíclicos. Perdi a vista do jardim, mas ganhei em luz. E em espaço, porque joguei fora muita coisa que vinha guardando por preguiça de me decidir se valia a pena manter ou não. Terminei de arrumar tudo na quarta e desde então tenho estado feliz com a nova configuração das coisas, pela daybed embaixo da janela e pela luz que entra por ela de manhã nesse finzinho de verão de dias já consideravelmente mais curtos.

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Esse ano eu estava meio chué por conta da mudança das estações, mas já passou. Tudo o que eu precisava era de um novo ninho quentinho (done), meias novas (check!), pijamas novos (em breve) e a proximidade das coisas e pessoas que fazem tudo parecer melhor. E em breve a minha estação preferida, mas enquanto ela não chega… let’s put the kettle on.

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A trip down memory lane







Eu tenho uma memória estranha. Ela é muito ruim para o passado recente, tanto que sinto ser preciso manter registros. Ontem estava tentando preencher uma folha sobre o que fiz na véspera e simplesmente não consegui me lembrar de um único evento acontecido há pouco mais de 24 horas. Tive que ir fazendo conexões para num efeito cascata retroativo me lembrar do que veio antes.





Frequentemente algum trigger me faz “puxar” memórias do fundo do baú mental. Hoje durante a  caminhada matinal alguma coisa que vi na rua me fez lembrar de ter ido com meus pais a uma festinha no Lespam/Casa do Marinheiro na Avenida Brasil, onde os Trapalhões estavam se apresentando. Eu era bem pequena, uns 2 ou 3 anos, mas lembro do Dedé me entregando um saco de pipoca e depois me repreender docemente com um “você deixou cair a pipoquinha?” enquanto um bando de adultos bobões ria de mim.





A primeira lembrança que tenho de verdade eu ainda era bebê. Parece que as cores são supersaturadas porém tudo está desfocado e nada tem sequência certa. Eu, uma pick-up, um lugar cheio de verde. Há coisas (brancas?) estendidas no gramado e diversas pessoas ao redor. A atmosfera me passa a impressão de tranquilidade. Eu estou no colo de alguém, e os braços dessa pessoa me erguem até algo que interpreto como sendo a copa de uma árvore. Lembro de sentir a presença de uma pessoa perto de mim. Eu parecia estar feliz.

Descrevi as partes soltas que me vinham à memória para minha mãe, pensando ser um sonho antigo, e ela se lembrou desse dia com alguma exatidão. E ficou chocada por eu me lembrar – a caminhonete, o piquenique, ela me erguendo para que eu tocasse a folha das árvores. Eu tinha menos de um ano. É engraçado ter lembrança dessas coisas quando elas acontecem numa idade tão tenra, é como lembrar de um sonho no dia seguinte, ou dias depois; a memória vem meio disforme, cercada por uma espécie de névoa que embaça as imagens. Talvez o nome dessa névoa seja tempo.



Para ajudar na memória recente eu costumo manter journals – em bom português, “diários”. Mas ao contrário dos diários clássicos que costumam ser uma coleção de desabafos catárticos, os journals também podem conter fotos, coleções de efêmera (ingressos de cinema, papel de bala, flyer de festas, etc), listas de coisas queridas (e outras nem tanto), arte, mementos, músicas e desenhos. Esses cadernos também ajudam no futuro; outro dia tive que consultar agendas pra lembrar em que ano a Chantilly veio morar conosco a fim de preencher um documento no veterinário.



Silly, how could you forget?

O plano para 2015 era fazer um Project Life, mas preguiça porque o projeto é bem “photo oriented” e eu não tenho muito saco pra imprimir fotografias. Quem sabe no futuro, quando eu aprender a usar melhor o meu tempo? Mantive os journals, apesar de às vezes atrasar vários dias; esses cadernos, por razões óbvias, não são compartilhados na internet, mas o planner com colagens sim. Sem contar que são desculpa excelente para se jogar em tralhas de papelaria. ♥















Para começar, no entanto, você só precisa de caderno e caneta.
Pode fazer quantos journals quiser, com os mais variados objetivos, mas eu prefiro reunir cada ano em um lugar só. Você pode usar pastas, arquivos, qualquer meio que possibilite guardar o que quiser no formato em que desejar. As “memory boxes” (caixinhas com lembranças acumuladas vida afora) são populares por aqui, mas podem acabar ocupando muito espaço caso a pessoa não seja muito seletiva ou capaz de editar o conteúdo. Eu acho uma boa idéia ir guardando o que for especial e todos os anos, por volta do Natal, abrir a caixa e reavaliar cada item, aproveitando para fazer um balanço do ano que passou e manter apenas o que for mais relevante. A cada cinco anos vale repetir o processo e ir eliminando os supérfluos, deixando ficar apenas aquilo que você terá prazer em rever daqui a cinco décadas.









Eu tenho uma tag sobre journalling aqui no blog que anda meio morta, mas vou tentar reativar. :)

Be kind, rewind.



Meu primeiro emprego propriamente dito (se você descontar a falta da carteira assinada) foi numa locadora de vídeo situada bem no meio do mapa da cidade do Grande Rio onde eu nasci. Na começo da adolescência eu ouvi falar da inauguração de uma locadora nova e chique no bairro; grande, com direito a fila fazendo voltinhas no quarteirão porque tinha ar condicionado, um bom acervo, cartãozinho de plástico com letras metalizadas e em relevo para os clientes, bebedouro com água gelada, cafezinho e aparentemente as atendentes eram gatas.

De onde concluímos que não foi nessa aí que eu fui trabalhar. Risos.

A que me empregou também ficava no centro, porém era mais modesta em termos de metragem e gêneros cinematográficos (“Cinema alternativo? A alternativa é procurar outra locadora, rárá”). Se um cliente reclamasse de sede receberia primeiro um olhar desconfiado e, caso insistisse, receberia água morna da torneira da “cozinha” – 01 pia, 03 copos, 01 microondas e 01 frigobar que não gelava nada. O cartão era de papel plastificado (o plástico era fino e descascava logo) e quase toda semana alguém aparecia tentando alugar uma fita VHS com algo que lembrava uma escultura abstrata de papel machê – mas que na verdade era só o nosso cartão, depois de um ciclo na máquina de lavar roupas tendo sido esquecido no bolso traseiro do jeans.






Quando comecei a trabalhar ali ninguém falava em internet. Sabíamos que existia, mas não fazia parte da nossa realidade – assim como férias na Disney e auto-estima. Conceitos como torrents e Netflix estariam em casa num episódio dos Jetsons, ou seja, futuro inimaginável. Já rolavam uns papos sobre “laser discs” que soavam como ficção científica; gênero que inclusive estava muito bem representado nas nossas prateleiras por Jurassic Park, Predador, Robocop, Alien, o Exterminador do Futuro e o genial 69: Uma Odisséia do Orgasmo.

Hein? Filmes independentes? Bom, esse aqui saiu de casa, mora sozinho e paga as próprias contas…

Quando comecei no expediente da tarde (três dias por semana) o movimento já estava diminuindo por conta da abertura da locadora chique. A esposa do patrão, em exercício de masoquismo nostálgico, gostava de apontar o fundo da loja e dizer que no passado as filas de clientes com as mãos carregadas de caixinhas de VHS chegavam até lá nas tardes de sexta e sábado. Eu nunca vi uma fila com mais de três pessoas ali, e quando fui dispensada menos de um ano depois (por não haver mais nece$$idade de manter todo aquele staff) não havia mais filas. A cada hora um cliente (ou menos) aparecia para devolver uma fita, às vezes buscar outra, às vezes apenas reclamar de que ela não havia funcionado direito ou para devolver o cartãozinho da loja – o que era desnecessário e me deixava irritada e meio triste porque eu nunca curti despedidas. “Não precisa devolver” eu respondia, metade mal humorada, metade sarcástica; “pode jogar fora ou guardar de recordação.”

Na maioria das tardes, enquanto o barulho da clientela fazendo perguntas e trocando idéias sobre os filmes ia aos poucos se transformando em ecos fantasmagóricos de um passado cada vez mais distante, a gente fazia pipoca no microondas, mandava um dos meninos comprar coca cola gelada na lojinha de conveniência do posto de gasolina (porque o maldito freezer não ia gelar mesmo) e ficava assistindo fitas na TV (ok, às vezes a novela repetida no Vale a Pena Ver de Novo era melhor do que qualquer coisa do acervo que a gente ainda não tivesse visto), fazendo fofoca de celebridade antes de o Just Jared sonhar em existir e rindo dos senhores meio encolhidos na seção de pornô – separada do resto da loja por uma espécie de biombo, que a gente apelidou de “paredão da vergonha”.

Não era pré-requisito para ser contratado, mas coincidentemente quase todo mundo ali gostava um bocado de cinema e tinha algum conhecimento útil na hora de recomendar filmes aos clientes. Não adiantava muito quando a pergunta era “qual desses filmes do Van Damme você acha o melhor?” e virou piada recomendar O Encouraçado Potemkin para a galera com cara de ter dificuldade pra entender o roteiro de Duro de Matar. O único problema era que a gente não tinha o Encouraçado Potemkin no acervo, por isso ficou apenas na piada.

A gente assistia Ruas de Fogo cantando “tonight is what it means to be young”, chorava em A Cor Púrpura, anotava citações de A Sociedade dos Poetas Mortos na agenda, tentava harmonizar O Mágico de Oz com o CD do Pink Floyd e torcia pra Andie terminar com o Steff em A Garota Rosa Shocking. Lá eu assisti pela primeira vez Asas do Desejo numa tarde chuvosa em que fiquei sozinha, sem ser interrompida pelo telefone que não tocava mais, alguns dias antes de ser dispensada. Associei a melancolia do filme à tristeza de ver um ritual morrendo aos poucos, o fascínio pelas TVs a cabo roubando a clientela que sempre esquecia de rebobinar as fitas antes de devolver – as mesmas que agora acumulavam pó nas prateleiras e não eram mais devolvidas com atraso e multa. As noites de sexta com cheiro de pipoca e crianças chorando porque o filme da Disney que elas queriam assistir já havia sido alugado não iam mais voltar.

A locadora fechou as portas poucos meses depois.
A locadora chique durou mais um ano ou dois, por ter apostado também em videogames. A era dos joguinhos online acabou com ela também.

“Ainda existe locadora de vídeo? Hahaha, que lixo” um conhecido riu quando eu disse.
Eu tenho a impressão de que nunca o perdoei.

(Fotos: Borough Market, London Bridge, Green Park)

A tia-avó.

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Perdemos essa linda no fim de semana, depois de 94 anos de graça, generosidade e alegria nessa terra.

Minha primeiras lembranças de você já envolvem beleza: o cabelo branquinho de algodão contrastando com a pele curtida pelo sol da lavoura, as mãos ásperas de toque suave segurando firme as minhas, pequenas e rechonchudas, para me ajudar a subir o morrinho atrás da casa e me mostrar no topo das montanhas da serra dos órgãos a silhueta do Dedo de Deus contra as nuvens.

Queria então te agradecer (já que não tive chance antes; eu, assim como todo mundo, achava que você fosse viver pra sempre), pelos ovos de galinha caseiros que você depositava fritos em cima do meu macarrão (nunca comi ovos mais amarelinhos, nem tão gostosos); pelo abraço e beijo melado na bochecha que eu ganhava assim que você me alcançava no portão e pelo chinelo enorme que você tirava do pé e colocava no meu quando eu tirava os sapatos na sala, para “não pisar no cimento frio”; por ficar de guarda na entrada do banheiro que não tinha porta, para que não me vissem fazendo xixi; pelas dancinhas no quintal ao som do violão de um filho ou outro, você rodopiando seus vestidos meio curtos de chita desbotada (os menos surrados eram para a missa de domingo); pelas inúmeras mudas de plantas que você nos dava para plantar em casa e que cresceram e continuam crescendo numa casa que já não é mais minha; por ter me ajudado a procurar minha pantera cor-de-rosa de borracha quando a perdi no meio de uma enxurrada de barro (e suportado de bom humor meus berros de desespero); pelas graças que você fazia, tirando a dentadura e mostrando as gengivas para as crianças rirem; pelo orgulho com que você me apresentava para todo mundo contando que eu, tão pequena, já sabia ler e escrever; pelas garrafas de Lindóia que você trouxe do armazém porque minha mãe não queria que eu bebesse a água do seu poço artesiano, e por engolir essa humilhação com dignidade e sem mágoa; pelos cachos de banana que você me ensinou a arrancar do pé e os bolos que fazíamos com eles na cozinha sem geladeira ou fogão, assados naquele épico forno de barro do quintal; pelas histórias de bicho-papão que sempre acabavam bem para todos – até pro bicho-papão, que no fim das contas não era tão mau assim porque até no bicho-papão você conseguia remediar a maldade. Te perdôo por tentar me arrumar namorado entre os meninos da vizinhança, tão apavorados com a idéia quanto eu, e pelas desculpas desnecessárias que você me dava pela casa humilde onde eu me sentia tão feliz e livre e amada.

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Criou os filhos, os netos, os bisnetos e todos os agregados que chegavam do nada e iam ficando sem jamais se ressentir, sem jamais reclamar, sem pedir nada em troca. Nunca tratou a filha deficiente como inferior ou incapaz, aceitou outra filha deficiente abandonada por outra mãe que não conseguiu lidar e a carregou no colo até que saiu do corpinho retorcido e frágil o último suspiro. Nunca uma palavra ruim para se referir a alguém, sempre um prato de comida ou um canto de dormir para oferecer a conhecidos (e desconhecidos) que batessem à porta da casinha de pau a pique ao pé da serra, que com muito sacrifício ao longo dos anos foi se transformando em tijolo.

Quando o capitalismo descobriu aquela fonte de água mineral puríssima no seu terreno (e então eu ri do nojo que minha mãe tinha do seu poço) e quis comprar tudo eu me perguntei se eles sabiam que estavam oferecendo (pouco) dinheiro em troca de memórias de uma vida inteira, da formação de uma família, da criação de filhos, netos, bisnetos, de colheitas e criações de animais que proveram tantas mesas, de árvores mais velhas que muitas gerações que passaram sob a sua sombra, dos nascimentos e mortes e ciclos de vida que se completaram debaixo daquele teto erguido por mãos calejadas e que de vez em quando ameaçava cair. Os olhos dos filhos arregalaram diante da tentação, mas você bateu o pezinho pequeno e rachado no chão de barro vermelho que era seu e disse que pariu e criou oito filhos ali e que dali só sairia morta. Ok, parte da terra foi embora antes (em troca de um teto novo e água corrente na torneira, porque o capitalismo não desiste fácil), mas eu senti tanto orgulho de você e fico tão feliz que pelo menos essa promessa você pôde cumprir.

Te vestiram de cetim branco, te cobriram de flores brancas que se confudiam com o branco dos cabelos e encheram dois ônibus de gente que queria te dizer adeus. O sorriso com poucos dentes que iluminava o seu rosto não virá mais, mas ainda posso ouvir a risada que você deu quando eu pus uma cuia de coité na cabeça da cachorra e disse que ela era o Papa; obrigada por ter sido uma das raras pessoas nessa vida que achava graça das minhas piadas.

E em momentos como esse eu queria não ser assim tão descrente, para não ter que usar dessa licença poética fazendo de conta que daqui em diante você vai rir lá no céu com o seu querido Dutinho, companheiro da vida inteira, e com a filha que herdou a maior parte da sua generosidade e nunca saiu do seu lado. O seu coração bateu por mais alguns anos depois que o dela falhou, mas finalmente se rendeu. Que todos os vira-latas e gatos e patos e bodes e outros bichos que você acolheu e alimentou em vida venham lá da rainbow bridge te encontrar para deixar os seus dias mais alegres, assim como todas as crianças que foram um pouco ou muito suas filhas e todos aqueles a quem você amou; porque foi só amor que você deu durante todos esses anos e é só amor que você merece.

E eu vou lembrar de você sempre que olhar para o dedo de Deus, cortando as nuvens que se espalham sobre a serra e apontando o caminho que você seguiu.

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A brief eulogy.

Liguei pra velha ontem e fiquei sabendo que a dona Elzir morreu. Enterrada no dia do meu aniversário, aparentemente; minha mãe não tem certeza. Enfim. Não fiquei exatamente chocada porque era esperado. Há anos ela mal levantava da cama, se locomovia com dificuldade (e raiva do fraldão geriátrico) e estava deprimida. Os filhos foram cuidar da própria vida e as visitas rarearam. Ela se queixava de solidão. Minha mãe morria de dó, mas também não visitava sempre porque é muito difícil estar com uma pessoa deprimida; a energia é sugada muito rápido e às vezes a gente precisa ter cuidado para não acabar deprimindo junto.

Lembrei daquelas festanças de natal e ano novo na casa dela, que minha mãe invejava a ponto de choramingar em cima do prato de peru com farofa. Lá em casa éramos só nós três. Por muitas vezes, depois da nossa ceia (no horário comum de jantar de todos os dias) ela também ia para a ceia deles (à meia noite, conforme o costume absurdo brasileiro). Eu devo tê-la acompanhado umas duas vezes e de fato era tudo muito animado; crianças da minha idade, música alta, comida, risadas e, dependendo do clima, as pessoas acabavam se atirando na piscina – que eu vi ser construída e onde quebrei um dente.

Era legal, sim, mas sei lá, eu não tinha inveja. Eu gostava da minha casa. Da quietude, de que a minha música não precisava estar no volume dez para competir com o barulho, de receber feliz natal da vizinha do lado por cima do muro, se sentar no terraço olhando o céu e ouvindo a algazarra na vizinhança (eu podia estar lá sem ter que estar), da comida da minha mãe, de ficar balançando na rede da varanda ouvindo discos do Roberto Carlos, de assistir os especiais de natal na televisão sentada no sofá dando rabanada para a cachorra e, apesar de ser divertida a gritaria e a correria com as outras crianças, na minha casa eu não tinha que aturar as brigas nas quais elas acabavam se metendo, as brincadeiras estúpidas (numa delas quebrei o tal dente) e nem precisava dividir a minha comida e a minha piscina, que inclusive era maior, com ninguém. De onde se conclui que eu já nasci velha, egoísta e sem paciência para dramas alheios. :)

Incontáveis foram as manhãs que passei sentada na mini biblioteca que eles tinham em casa (com três filhas professoras era óbvio que os muitos livros didáticos e de literatura infantil precisavam de um espaço só deles, para evitar o caos), lendo compulsivamente qualquer coisa que pudesse ser lida enquanto minha mãe não vinha me buscar. Muitas vezes eu simplesmente “acordei” ali, tendo sido levada nos braços adormecida e ainda enrolada no cobertor (eram vizinhas de frente; bastava atravessar a rua) quando minha mãe precisava sair muito cedo e me deixava sob os cuidados da Elzir, meio gordinha, bonitona e animada, cabelo cor de laranja bem tratado e unhas impecavelmente vermelhas. Os cafés da manhã sempre contavam com bolo ou pão na chapa quentinho, que eu comia sentada na mesa da copa com as pernas ainda enroladas no cobertor de casa mas já com um livro no colo. “Pare de ler pra poder comer, menina!” ela ria, mas eu amava comer lendo e o hábito se cristalizou de tal forma que hoje em dia eu acho estranho ler qualquer coisa sem comer ou comer qualquer coisa sem ler.

Ela usava uns macacões de tecido estampado e sandálias abertas, porque os pés sempre foram um problema. Sempre ia fazer compras num supermercado fora da cidade (ela dizia que os preços eram melhores; eu e minha mãe duvidávamos) e muitas vezes fomos todas juntas, a Elzir dirigindo o seu fusquinha cor de tijolo sem muito cuidado pelas estradas mal conservadas da Baixada.

Da última vez em que estive no Rio eu fui com a minha mãe visitá-la; a dona Elzir queria me ver. Ela veio se arrastando, beeem devagar, para abrir o portão e por trás dele encontrei quase inalterado o enorme quintal onde passei a infância brincando e subindo nos pés de amora e goiaba (esses não existem mais). Ela já estava viúva há muitos anos e a garagem vazia não mais abrigava a velha picape do seu Haroldo, que passou a vida sujo de graxa e consertando carros. Sentei no banquinho de balanço, feito de ferro retorcido e pintado de branco que ainda morava na varanda com aquela mesma almofada fina demais para ser confortável (os ferros cortavam a bunda da gente) onde devo ter me balançado por anos da minha vida, enquanto ouvia a dona Elzir reclamar da dor nas pernas me servindo bolo de banana com suco de manga e café – era impossível ir à casa dela sem ser entupida de comida gostosa.

Tentei evitar carboidratos naquela visita, mas ah, aquele almoço. Naquela copa onde, provavelmente com a boca cheia de pão, eu li o primeiro livro de verdade da minha vida. Uma das filhas fez um prato que envolvia batatas e depois fomos assistir TV no ar condicionado do quarto. Alguns netos chegaram, as crianças que um dia brincaram comigo e me empurravam na piscina trazendo suas esposas e noivas, e tudo foi ficando meio surreal. Era o meu passado voltando numa versão atualizada e me fazendo sentir a idade de um jeito estranho. Tendo saído do país eu não convivo com muitos contemporâneos no meu dia-a-dia, e é sempre curioso me dar conta de que não foi só pra mim que o tempo passou.

Mas passou sim, o tempo, para todos nós, e levou a dona Elzir, e eu provavelmente nunca mais vou entrar naquele sobrado verde claro quadradão, com telhas portuguesas e um azulejo cafona com a figura de São Jorge colado na frente. Fui olhar pra ele no google maps e me dei conta de que não é mais verde, foi pintado de amarelo. Isso, por alguma razão, me entristeceu. Mas me consolou ter feito essa última visita, sentado naquele balanço, comido aquele segundo pedaço de bolo e acenado com um sorriso à distância quando ela me disse pela última vez, exatamente como quando dizia ao me devolver para minha mãe décadas atrás: “beijos, minha querida; até a próxima”.

Goodbye October.

Foguetório de Guy Fawkes na rua. Acho engraçado eles anteciparem a data pra “cair no fim de semana” quando a festa acaba antes das nove da noite anyway e não é como se fosse atrapalhar a “school night” das crianças.

Respectivo passou o dia em Stratford embalando tudo para pôr na van alugada e mudar o escritório. Veio brevemente descarregar caixas em casa e voltou para dar carona aos ajudantes. Abri uma champagne barata do Tesco, sentei na frente da casa sozinha e fiquei observando os fogos na rua, alternando o olhar entre o céu escuro pontilhado de pólvora em chamas e a grama meio úmida e pontilhada de folhas de outono sob os meus pés. Uma vibe reveillon, trilha sonora e cenário, como se eu tivesse de novo 10 anos e, de saia balonê amarela sentada sozinha no canteiro do jardim olhando a grama e os fogos e ouvindo os estouros, sentisse uma curiosa paz. Havia uma festa acontecendo em outro lugar; havia várias festas acontecendo em muitos lugares, a minha bebida estava gelada (outrora Keep Cooler, agora champã de 13,99), o clima estava ameno (verão no reveillon do Rio, outono a 20 graus Celsius aqui) e não havia absolutamente nada nem ninguém para interromper meus pensamentos.

Bliss.

Welcome, November.
Outubro não prometeu, mas também não cumpriu. Os últimos 30 dias foram caóticos, cansativos e frustrantes.
Esperando que os próximos sejam melhores. ♥

I’ll tell you my sins and you can sharpen your knife

Vamos brincar de compartimentalizar? Vamos.
Extrovertidos = estímulos externos, comunicação, agitação, gostam de sair, formar laços e de cachorro. Introvertidos = estímulos internos, análise, tranquilidade, gostam de ficar em casa, da própria companhia e de gatos. E muitas vezes os extrovertidos vão achar os introvertidos meio esquisitos/chatos, e os introvertidos por sua vez vão achar os extrovertidos meio básicos/irritantes.

Isso é só uma observação minha, e não está escrito em nenhum livro ou pedra. Nem mesmo naquela debaixo de que eu, como boa introvertida, me escondo. Vivo me explicando para extrovertidos, que costumam analisar ao pé da letra tudo o que ouvem. Talvez por não terem tempo de refletir sobre o que acabaram de ouvir porque precisam chegar logo a uma conclusão a fim de “manter a conversa andando”. Perdi as contas de quantas vezes interrompi uma opinião precipitada para perguntar, “eu sei que você OUVIU o que eu disse, mas você ENTENDEU o que eu quis dizer?”

Respira, doido.

Outro dia eu li no jornal sobre um experimento feito com dois grupos de pessoas: um que havia se declarado como “extrovertido” na entrevista e outro que havia se declarado “introvertido”. Depois da entrevista elas eram deixadas individualmente em uma sala e ouviam “você se importa de esperar aqui por 15 minutos?”. Na sala havia uma botão que, quando apertado, fazia com que músicas tocassem e luzes se acendessem. Os introvertidos apertavam o botão uma vez, descobriam o que ele fazia e não apertavam de novo. Os extrovertidos passavam os 15 minutos apertando o botão continuamente. Necessidade de estímulo externo. O introvertido abana a cabeça. “Passaram os 15 minutos olhando pro nada”, pensa o extrovertido. E abana a cabeça também.

Certa vez eu estava com duas pessoas na casa de uma delas. Enquanto tomávamos cerveja na piscina, o cachorro do dono da casa (um desses raros introvertidos que prefere cachorro a gato, embora ele reclamasse que o bicho era “carente”) escapa pelo portão que o moço da entrega de gás tinha deixado aberto. Saímos para a rua a procurar o cão. A extrovertida diz, “vamos pedir ajuda pra procurar, perguntar às pessoas se elas viram o cachorro”. O introvertido diz, “o cachorro é meu, eu sei como ele é; não preciso pedir ajuda a ninguém, não complica”. O introvertido assobia e chama pelo cachorro; a extrovertida começa a parar pessoas na rua a fim de perguntar se elas por acaso viram um cachorrinho marrom. Notei que ela perdia mais tempo procurando gente para procurar o cachorro do que, efetivamente, procurando o cachorro. O introvertido perdia tempo reclamando disso.

Embora o reclamão fosse chato (e nem todo introvertido é chato, juro – embora possamos parecer assim para extrovertidos) eu reconheço que a necessidade da outra de interagir para tudo, de buscar nos outros, mesmo que fossem estranhos, um certo consolo no meio do desespero não ressonava em nada comigo. Ela teria tropeçado naquilo que estava procurando, tão focada estava em fazer o mundo inteiro saber que tinha sumido. O chato assobiava.

Por fim eu achei o cachorro. Seguro pela coleira, levo portão adentro, fecho o trinco e volto para a rua a fim de procurar os dois e anunciar a minha descoberta.

Os dois: “onde ele estava??”
Eu: “não sei, eu estava ali parada e irritada com vocês quando senti algo lamber o meu dedo.”

Isso descreve de forma mais ou menos precisa a minha personalidade.

(fotos em Battersea Park / Albert Bridge / Chelsea Embankment, iphone)

To my beautiful, tortured nemesis.

Foi só depois de alguns meses que eu deixei o Brasil em definitivo que finalmente quebrei um hábito de anos: deletar sucessivas contas de email e criar novas, para fugir de você. Eu passava horas rabiscando idéias esdrúxulas para nomes de usuário em guardanapos de boteco, páginas de revistas, livros, agendas… Até hoje quando resolvo revirar os rastros físicos do meu passado, na forma de um livro querido de infância ou um encarte de CD, eu esbarro nessas palavras (“deaddonnut”… “miss_ann_thrope”… “perfectlyhideous”…), que não fariam o menor sentido aos olhos de estranhos mas que me afundam a alma em desconforto.

Seu ódio por mim fez com que você focasse nas nossas diferenças; minha tentativa de compreender o seu ódio me fez buscar nossas similaridades. E durante esse processo eu percebi que em alguns aspectos nós éramos bastante parecidas. O dia em que chegamos usando os mesmos sapatos baratos, ainda que você tivesse dinheiro para calçar os tênis mais caros. O fato de que não nos importávamos muito com maquiagem ou cabelo. De que nunca optávamos pelos sabores mais populares na sorveteria – eu pedi jaca, você fingiu vomitar mas pediu feijão “porque era engraçado”. De que nos recusávamos a usar *qualquer* peça na cor branca durante o reveillon. Aquela tarde em que nós duas gritamos ao mesmo tempo “não tira! deixa aí!” quando alguém tentava sintonizar outra rádio no carro porque começou a tocar Joy Division. Nossas respostas assustadoramente parecidas nos cadernos de perguntas. A falta de traquejo social e inabilidade de jogar conversa fora – o lance era abrir a alma ou nada. A tola fascinação juvenil pela chuva/roupas pretas/Londres. A risada compartilhada na mesma piada ruim que ninguém mais entendeu. As opiniões vagamente controversas e o gosto pelo humor escatológico. O medo de que ele eventualmente fosse encontrar outra pessoa com quem se importar. E em meio a todas aquelas pessoas, a Solidão.

Você me disse e fez coisas horríveis. Impensáveis, hediondas, monstruosas. Coisas que poriam você na cadeia. Coisas que me fizeram questionar os níveis mais básicos de confiança nos humanos. Mas você devolveu o meu livro pelo correio e colocou um saquinho de balas na caixa – que eu, sinto dizer, joguei fora por medo de envenenamento. Você me defendeu quando me acusaram injustamente. Você me ajudou a procurar o cordão que eu perdi na piscina. Você pediu perdão (e eu fingi não perceber o seu ar de escárnio no background). Você pediu sorvete de jaca no dia seguinte. Eu não lembro se provei o de feijão.

As últimas notícias suas que chegaram a mim por contatos em comum não eram boas. Sua vida estava exatamente onde naquela última tarde eu previ que estaria: no esgoto. Com essas palavras eu virei as costas e não nos vimos mais de frente. Mas eu encontro você quase todos os dias, nas palavras cruéis dos outros onde a sua voz ainda ecoa. De certa forma eu lamento pela natureza grotesca da sua queda anunciada, mas é assim que os grandes caem: espetacularmente. Você esteve no topo e foi de lá que despencou. Impossível não machucar.

Percorrer meus arquivos online (blogs, sites, FAQs) sempre que você me descobria e deletar coisas que eu não queria que você lesse fez com que eu me perguntasse várias vezes por que diabos eu não optava pela solução mais simples, colocando senha em tudo. Era assim que eu me rebelava contra a sua perseguição? Me punindo com angústia desnecessária? E do que, afinal de contas, eu tinha medo? Dando scroll freneticamente através dos anos, me perguntando até onde você tinha chegado nos meus arquivos e o quanto já teria lido – eu estava correndo contra o insondável. E nem era como se eu realmente me importasse em apagar os supostos segredos; não é como se eles realmente fossem segredos para você. Não havia uma única frase que você já não tivesse ouvido antes – de mim, dele, dos outros. Nem um único episódio que lhe fosse desconhecido. Meu medo não vinha da vergonha, mas sim do orgulho. Eu sabia que você se lembrava de tudo; eu só não queria que você soubesse que eu me lembrava também.

Porque em pelo menos uma coisa eu queria muito que nós fôssemos diferentes. Mas bem, nós não somos.
Nós nunca vamos nos livrar do passado.

If you read this. I hope you’re well.

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Este post faz parte da blogagem coletiva “Das cartas que eu nunca te escrevi” do Rotaroots, um grupo de blogueiros saudosistas que resgata a velha e verdadeira paixão por manter seus diários virtuais. Para ler todas as blogagens coletivas do Rotaroots, clique aqui. Quer participar? Então faça parte do nosso grupo no Facebook e inscreva-se no Rotation.

Throw back thursday: Santa Teresa (2003)























Há onze anos eu peguei a minha câmera digital Kodak Easyshare (DOIS megapixels, wow!) e subi a ladeira para Santa Teresa. A tenebrosa onda de violência que viria a assolar o bairro ainda estava distante na linha do tempo e eu não tive medo de me levarem a máquina; na verdade fiquei com mais medo de um assalto no ônibus, mas resolvi o problema enfiando a câmera no bolso de trás da calça, claro. #CariocaHacks

Mas a primeira vez mesmo que eu fui a Santa Teresa foi de bondinho, extasiada com a experiência de subir aquelas ruas de paralepípedos e pedrinhas e encantada pelos casarios centenários, românticos e em váriáveis graus de decrepitude. Eu vinha sentada num dos bancos de madeira do bonde ao lado da E., uma amiga da minha mãe que era auxiliar de enfermagem e estava me levando para conhecer o hospital onde trabalhava. Lá chegando me apresentou às pessoas e na cozinha me deu um copinho de gelatina, da sobremesa dos pacientes. E. tinha cerca de 30 anos e gostava muito de crianças. Algumas pessoas não a viam com bons olhos; ela era naturalmente esquisita e ficou ainda mais depois que sofreu um aneurisma. Que foi quase fatal, mas no fim só a deixou mais esquisita – meio adulta, meio criança, uma combinação irresistível para quem era pequeno de fato. Vários amiguinhos meus também eram amiguinhos dela.

E. tinha bonecas, o favorito sendo um “Feijãozinho” da Estrela que ela chamava de André e para quem minha mãe, a pedidos, costurava roupinhas. Rezava a lenda que E. tinha sofrido um aborto natural durante o seu breve casamento (eu lembro que fui à festa, mas eles se separaram pouco tempo depois) e nunca se recuperou da tristeza por ter perdido o bebê. Diziam também que ela “não teria outra chance”, já que o casamento na verdade havia terminado por ela ser lésbica. Isso eu jamais saberei – apesar de ela não usar roupas consideradas “femininas” e ter uma amizade próxima com uma colega de trabalho chamada R.. O que sei é que depois de algum tempo minha mãe me proibiu de ir à casa dela. As mães de algumas outras crianças também vetaram as visitas. O que certamente a deixou muito triste. E a nós também, já que ela nunca fez nada de mal – nada além de miojo com salsicha, deixar que brincássemos com as suas coisas e conversar conosco como se não fôssemos imbecis. Saudades do quarto escuro com pedaços de tijolo aparente onde o reboco tinha caído, do André sentadinho na cama junto das outras bonecas e bichos de pelúcia e dos copos de plástico com refresco colorido em pó. Me pergunto por onde ela anda, se teve filhos, se ainda é amiga da R., se está feliz. Sempre que penso em Santa Teresa (e eu penso em Santa Teresa mais do que gostaria) ela é uma das pessoas de quem me lembro.

Revendo essas imagens eu percebo o quanto fotografava mal. Não que tenha melhorado muito, mas agora eu pelo menos considero detalhes como composição e exposição antes de clicar. Onze anos atrás a idéia não era “fazer bonito” porque eu não pretendia expôr nada – nem em galerias, nem no instagram. Nem mesmo num blog, apesar de já ter alguns. Eu só queria mesmo poder registrar o momento e dar um jeito de trazê-lo comigo num lugar além da memória, já que a minha nunca foi boa. Onze anos atrás levar histórias na lembrança bastava. Mas hoje nessa curiosa vida 2.0 hipercompartilhada eu estou aqui, jogando essas bobagens e fotos ruins ao vento como se elas tivessem valor para mais alguém.

Às vezes eu me pergunto o que foi que mudou mas logo tiro a pergunta da cabeça, evitando atinar acidentalmente com uma resposta que eu não queira ouvir.