Grey on grey on grey.

Zerei a contagem de items na cor vermelha deste armário. Grey on grey on grey.

Também limpei e guardei as louças que ficavam nessas prateleiras e agora elas vão abrigar livros (faltam dois hardbacks do Bill Bryson ali). Coloquei um pouco de verde em volta para trazer um pouco de cor, já que é a primeira coisa que se vê ao entrar na minha casa.

A casa de bonecas (que eu achei descartada no lixão municipal) temporariamente nesse canto que ficou vazio quando eu mudei o bureau para o quarto de hóspedes (depois de ter mudado o gaveteiro para o barracão… ufa!). Ela vai pra biblioteca mas preciso desocupar o lugar dela lá.

And behold minha bela sopeira francesa:

Andei um tempão atrás de uma dessas, sem sucesso. Foi uma das poucas coisas que eu comprei na feira de antiguidades de Sunbury, e reclamando ainda por não ter conseguido fazer o cidadão me vender por menos de 18 libras (preço original era £20). Na verdade foi um bom preço por uma peça única e antiga; no Ebay eu não estava achando nada por menos de £35, por mais comum que fosse.

Próximo passo: pintar a sala.

1981

Sendo uma pessoa nostálgica, de vez em quando gosto de dar rolezinhos virtuais pelos meus antigos bairros com a ajuda do Google Earth. Subo ladeiras, atravesso ruas, escolho direções em encruzilhadas, revisito esquinas, comparo as imagens recentes com as que tenho na memória e não existem mais.

A casa cuja fachada recoberta de ladrilhos pretos a fez ganhar o apelido de “mausoléu”. A laje da casa da amiga onde nos sentávamos com uma garrafa de coca cola, um maço de cigarros e todo o tempo do mundo para desperdiçar sem dó uma tarde de sábado olhando o movimento da rua. A padaria onde meu pai me levava para comprar o sorvete dominical, com a banca de revistas na porta onde eu contava moedas para trocar por envelopes de figurinhas. A padaria que tinha “aquele pão gostoso” que não tinha nas outras. A padaria mais longe, que ficava perto demais de um lugar onde não se devia ir.

O supermercado que antes era fábrica de açúcar ao lado da escola e que enchia as nossas tardes de “cheiro de doce”. O muro pintado em comemoração à copa do mundo de 1986 (a primeira de que me lembro) e que continua da mesma cor, o verde anêmico da tinta misturada com água pra render que desbotou mas manteve o desenho. O portão de madeira caindo aos pedaços atrás do qual eu fui implorar uma vaga na quadrilha de são joão da rua (e não consegui; boa argumentação, péssima dançarina). A casinha quadrada e (ainda) amarela onde pulei corda no quintal de uma amiguinha da escola que tinha vergonha de levar colegas em casa porque a mãe vendia sacolé e o pai abusava do álcool. A calçada onde um grupo de pessoas revezou um binóculo para ver gente morta pendurada na torre de energia elétrica (essa era a realidade da baixada nos anos 80, cortesia da Falange Vermelha).

A lanchonete que foi locadora de videogames e alvo de muitas peregrinações vespertinas atrás daquele jogo que vivia alugado, o pet shop que foi vendinha onde íamos comprar cocada, bananada, dadinho e a lendária pipoca do saco vermelho, o supermercado que foi loja de material de construção onde meu dente de leite caiu dentro de um ralo, o condomínio de sobrados que foi o terreno baldio onde eu aprendi a andar de bicicleta, o bar que foi barbearia onde meu pai cortava cabelo comigo sentada no colo, a “casa do lobisomem” que abrigava um senhorzinho taciturno e bastante peludo que “sumia em noite de lua cheia”, o endereço da menina mais bonita da rua (não era o meu), as grades do portão da casa onde eu nasci (e por onde eu enfiava a mão para bater nas crianças na calçada). As lembranças são infindáveis.

Minha mãe tinha “cisma” com algumas ruas. Bastava ter ouvido falar de um crime que teria (ou não) acontecido ali 10 anos atrás e aquela área era permanentemente catalogada na pastinha mental “LUGAR PERIGOSO” e banida para mim. “Se eu SONHAR que você pôs os PÉS na rua da caixa d’água você NUNCA mais sai de casa!”, o tom ameaçador combinando com o dedinho em riste e destoando da minha cara de deboche. Pois a melhor amiga da minha mãe morava nessa mesma rua, que por acaso estava liberada justamente até a casa dela. Já que ninguém sabia as coordenadas geográficas exatas do crime, por que não empurrá-lo alguns metros acima? How convenient.

Falando em crime, tem também a avenida de casas onde mataram um homem e nós crianças ficamos sabendo na hora em que saíamos pra escola. Imagine um bando de ten years olds se acotovelando e fazendo fila por trás de uma mureta a fim de assistir policiais jogando água em cima do cadáver rijo, o sangue diluído se espalhando pelo chão de cimento. Eu nunca soube exatamente o que havia acontecido/estava acontecendo ali, mas a imagem jamais saiu da minha memória. E parecidas a ela ficaram outras, algumas envolvendo meninos que cresceram comigo, que brincaram de pique esconde comigo, que jogaram queimado no meu quintal, com quem eu dividi ficha de fliperama em botequins e sacos de pipoca em tardes de cosme e damião. Meninos interrompidos.

No começo desse ano a mãe de um deles me adicionou no facebook. Lembrei dela três décadas mais nova: moça pálida sumindo dentro de amplos vestidos estampados, saía pouco e mal penteava o cabelo – mas naquela época depressão tinha outros nomes. Quase todos feios. Perguntou pela minha mãe, sobre a minha vida e quis saber se estou feliz.

“Você ainda lembra do meu filho?”

Lembrava. E contei daquela noite na escada da casa dela onde meu tamagoshi morreu, ele consertou meu chinelo e me ensinou a jogar brick game. Ele era bom com essas coisas, disse ela. Era sim. Eu lembro. E lembrei de outras coisas, de pequenas anedotas desimportantes de criança mas que fui contando, inflando significados e esticando dimensões, sendo o Google Earth possível para uma saudade que não podia ser satisfeita por um mapa na internet. Uma nostalgia que requer testemunhas, que precisa desesperadamente de uma garantia de que coisas que não estão mais aqui existiram e deixaram marcas.

Pintaram o portão preto da casa onde eu nasci.
Ele agora é prateado, mas as grades de ferro retorcido são exatamente as mesmas.

Sunbury Antiques

Depois de passar anos querendo muito ir ao Sunbury Antiques Market eu finalmente consegui reunir a força de vontade necessária para acordar antes das seis da madrugada e me arrastar em direção a Surrey. Os portões são abertos por volta das seis e meia e tudo está encerrado antes das duas da tarde. Boa parte dos stands fica ao ar livre, então é bom se agasalhar. Nesse dia fazia bastante frio mas pelo menos a chuva deu uma trégua.

Tem praticamente de tudo – louças, móveis, têxteis, arte, colecionáveis, objetos decorativos, curiosidades e… veados deprimidos.

Eu não tinha levado dinheiro, ninguém aceitava cartão e o único caixa eletrônico estava quebrado. Ou seja, não pude comprar quase nada. Não que eu pretendesse meter o pé na jaca pois não há muitas barganhas. Os vendedores costumam ser experts em antiques e sabem muito bem o valor do que têm em mãos; inclusive muitas vezes dão aquela superestimada pra se dar em bem em cima dos trouxas. Eu não esperava achar pechinchas porque afinal fica perto demais de Londres pra ser barato, mas definitivamente não pense que vai sair de lá com a sacola cheia a menos que esteja disposto a gastar.

Por volta de meio dia eu já tinha esgotado minhas libras com um vasinho quebrado e uma sopeira de porcelana francesa e achei que já estava na hora de ir (o frio e a minha falta de dinheiro não estavam ajudando). Como o sol tinha saído e o dia estava bonito resolvi dar um rolê por Sunbury, que fica às margens do Tâmisa e é um lugar especial pra mim – foi a minha primeira parada em solo britânico depois de sair do aeroporto e onde tomei minha primeira pint de real ale num pub chamado The Flower Pot.

Por acaso era também “Pancake Day”. A terça-feira de carnaval aqui não tem confete, serpentina ou samba enredo, mas tem muita panqueca. Este era o dia em que tradicionalmente os britânicos faziam receitas para utilizar os ingredientes que não podiam ser consumidos durante a quaresma – leite, manteiga e ovos. Eu estava em low carb mode on e fiquei só no chá, mas fotografei a panqueca alheia para o deleite dos leitores:

E na saída a primavera que já começava a se anunciar me deu esse presente:

O mercado de antiques de Sunbury acontece na segunda e na última terça feira de cada mês, é gratuito e estacionamento no local. Chegue cedo e coma um bacon butty na barraquinha logo na entrada. ♥♥