Há onze anos eu peguei a minha câmera digital Kodak Easyshare (DOIS megapixels, wow!) e subi a ladeira para Santa Teresa. A tenebrosa onda de violência que viria a assolar o bairro ainda estava distante na linha do tempo e eu não tive medo de me levarem a máquina; na verdade fiquei com mais medo de um assalto no ônibus, mas resolvi o problema enfiando a câmera no bolso de trás da calça, claro. #CariocaHacks
Mas a primeira vez mesmo que eu fui a Santa Teresa foi de bondinho, extasiada com a experiência de subir aquelas ruas de paralepípedos e pedrinhas e encantada pelos casarios centenários, românticos e em váriáveis graus de decrepitude. Eu vinha sentada num dos bancos de madeira do bonde ao lado da E., uma amiga da minha mãe que era auxiliar de enfermagem e estava me levando para conhecer o hospital onde trabalhava. Lá chegando me apresentou às pessoas e na cozinha me deu um copinho de gelatina, da sobremesa dos pacientes. E. tinha cerca de 30 anos e gostava muito de crianças. Algumas pessoas não a viam com bons olhos; ela era naturalmente esquisita e ficou ainda mais depois que sofreu um aneurisma. Que foi quase fatal, mas no fim só a deixou mais esquisita – meio adulta, meio criança, uma combinação irresistível para quem era pequeno de fato. Vários amiguinhos meus também eram amiguinhos dela.
E. tinha bonecas, o favorito sendo um “Feijãozinho” da Estrela que ela chamava de André e para quem minha mãe, a pedidos, costurava roupinhas. Rezava a lenda que E. tinha sofrido um aborto natural durante o seu breve casamento (eu lembro que fui à festa, mas eles se separaram pouco tempo depois) e nunca se recuperou da tristeza por ter perdido o bebê. Diziam também que ela “não teria outra chance”, já que o casamento na verdade havia terminado por ela ser lésbica. Isso eu jamais saberei – apesar de ela não usar roupas consideradas “femininas” e ter uma amizade próxima com uma colega de trabalho chamada R.. O que sei é que depois de algum tempo minha mãe me proibiu de ir à casa dela. As mães de algumas outras crianças também vetaram as visitas. O que certamente a deixou muito triste. E a nós também, já que ela nunca fez nada de mal – nada além de miojo com salsicha, deixar que brincássemos com as suas coisas e conversar conosco como se não fôssemos imbecis. Saudades do quarto escuro com pedaços de tijolo aparente onde o reboco tinha caído, do André sentadinho na cama junto das outras bonecas e bichos de pelúcia e dos copos de plástico com refresco colorido em pó. Me pergunto por onde ela anda, se teve filhos, se ainda é amiga da R., se está feliz. Sempre que penso em Santa Teresa (e eu penso em Santa Teresa mais do que gostaria) ela é uma das pessoas de quem me lembro.
Revendo essas imagens eu percebo o quanto fotografava mal. Não que tenha melhorado muito, mas agora eu pelo menos considero detalhes como composição e exposição antes de clicar. Onze anos atrás a idéia não era “fazer bonito” porque eu não pretendia expôr nada – nem em galerias, nem no instagram. Nem mesmo num blog, apesar de já ter alguns. Eu só queria mesmo poder registrar o momento e dar um jeito de trazê-lo comigo num lugar além da memória, já que a minha nunca foi boa. Onze anos atrás levar histórias na lembrança bastava. Mas hoje nessa curiosa vida 2.0 hipercompartilhada eu estou aqui, jogando essas bobagens e fotos ruins ao vento como se elas tivessem valor para mais alguém.
Às vezes eu me pergunto o que foi que mudou mas logo tiro a pergunta da cabeça, evitando atinar acidentalmente com uma resposta que eu não queira ouvir.