Indimenticabile.

Outro dia me perguntaram “qual parte do meu passado eu não conseguia esquecer”. E eu nem sei se tem uma parte específica; sei que há várias ocasiões de épocas diversas da minha vida que eu sei que vão estar sempre na memória. Por motivos bons ou por motivos péssimos. E às vezes por nenhum motivo aparente. Por que será que a gente não consegue lembrar de algumas coisas dadas como importantes, mas nunca esquece de certos momentos bobos que não deveriam ter a menor relevância?

O dia em que carreguei uma caixa enorme com uma árvore de natal, revezando com um amigo, do centro da cidade onde a comprei até a casa de uns amigos dele e de lá até a minha casa do outro lado da cidade. O dia em que caí de uma árvore dentro de um buraco no chão onde cortei a barriga num pedaço de vidro e fui carregada pelas vizinhas até a casa de uma enfermeira para limpar o corte, me achando “especial” (eu tinha uns 4 ou 5 anos). O dia em que o muro dos fundos da casa desabou com uma chuva forte de março, quase matando a minha mãe – ou do dia em eu quase a matei de susto, quando brincando de pique esconde caí e bati com a cabeça na cama fazendo o sangue jorrar. O dia em que um cara numa bicicleta atropelou uma vizinha que me carregava no colo e eu caí, e meu pai correu atrás do cara com o rodo gritando que ia matá-lo (com um rodo??). O dia, ou melhor, começo de noite de sábado em que voltei feliz da casa de um amigo e meu pai me levou até o canteiro no jardim onde ele havia acabado de enterrar minha gata, que morreu envenenada enquanto estive fora.

Meu aniversário de dez anos com os meus amigos mais velhos, onde todo mundo caiu na piscina e eu pus metade deles pra dormir no banheiro depois. A formatura do pré-primário, em que eu fui a oradora e a professora me deu uma faixa de papel crepon onde se lia “Miss Devora Livrinhos” – o primeiro reconhecimento de uma paixão que me consumiu a infância: ler. O dia em que essa paixão começou a se tornar possível quando escrevi a lápis, sem nem perceber o que estava fazendo, as vogais na carteira da escola – e o meu choque por perceber que tinha conseguido.

O dia em que acordei pela manhã com meu pai batendo no vidro da janela do quarto e, quando eu e minha mãe abrimos, o portão de ferro da garagem também estava aberto; tinham roubado o nosso fusca. A primeira vez que vi esmalte preto na vida, na casa de uma prima onde eu estava passando uns dias, e quando voltei pra casa minha mãe ficou apavorada com as minhas unhas góticas. As festas góticas onde as meninas faziam dancinhas ao som de Bauhaus e enchiam a cara de coca cola com campari, martini, cachaça, o que tivesse. As festas indie em Copacabana nos mesmos locais que nos outros dias da semana serviam como puteiro.

Passar a tarde antes do natal lambendo tigelas de massa de bolo crua e assistindo especiais natalinos na TV. O dia em que meu namorado gritou comigo pelo telefone e, antes mesmo de a gente se encontrar pessoalmente, eu pensei “esse cara não presta”. O dia em que ele riu quando eu cantei pra ele ao telefone – e depois disso eu nunca mais consegui nem ouvir a música em questão. O dia em que eu estava dançando em uma festinha de criança e uma garota um pouco mais velha riu de mim e perguntou ao meu pai se eu era maluca. O dia em que eu chorei no banheiro do trabalho por estar exausta de tanta injustiça.

Ler o primeiro livro que li na vida, cada dia um capítulo, na casa da vizinha onde minha mãe me deixava para que pudesse sair. Os concursos de dança com as crianças da rua na calçada da casa onde cresci. O tom exato de cornflower blue dos olhos do meu namorado. O cheiro de perfume de maçã verde que eu usei no dia em que fui ver Karatê Kid no cinema com uma amiga. O dia eu e outra amiga fomos barradas na fila de um filme censura 14 anos – ela tinha 13 e cara de criança; eu com 11 certamente teria entrado se ela não tivesse estragado tudo, aquela linda. O dia em que deu vontade de fazer xixi numa festa junina, ninguém topou deixar a gente usar o banheiro e fomos de xixi coletivo numa rua nem tão deserta assim.

Manhã de domingo pós-festinha de criança, com bolo e docinhos no freezer para o café da manhã e as lembrancinhas pra incorporar às brincadeiras de casinha do dia. Manhã de domingo com meu pai me trazendo jornal, coca cola e sanduíche de mortadela na cama. Minha mãe chorando quando eu comecei a chorar de medo no carrossel. Quando minha amiga, que tinha sido dada como morta depois de cair de uma roda gigante, saiu do hospital e veio de pijama e curativos na cabeça pra minha casa e a gente fez uma festa de aniversário pro meu pai – uma lata de goiabada com uma vela de cera no meio. Meu pai todo feliz e dizendo que ela ter sobrevivido era o presente dele. Essa mesma amiga anos depois me escrevendo uma carta diretamente da cadeia, contando que se lembrava desse dia. O pré-trote de calouros na minha primeira faculdade e toda a humilhação que eu senti. Todas as coisas horríveis que ouvi das colegas de curso. Todas as coisas horríveis que li de pessoas aqui na internet. Todas as coisas lindas que fizeram por mim, que eu disse e ouvi dos meus amigos sem que a gente precisasse falar.

Enfim, a gente poderia passar milênios enumerando e ainda assim esqueceria quase tudo. O que não deixa de ser meio irônico, já que são coisas que a gente jamais vai esquecer – mas não dá pra espremer e sair tudinho de uma vez, que nem um tubo de pasta de dente. A memória é uma filhadaputa caprichosa. Apaga lembranças reconfortantes e quentinhas feito um abraço de amigo ou edredon pós banho no inverno, e mantém as desagradáveis e doídas, feito pisar em caco de vidro ou morder uma pedrinha dentro da massa do pão. Mas a beleza de estar vivo é que essa lista, de um jeito ou outro, está sempre crescendo.

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