Não lembro de ter feito amigos no pré-escolar, mas o primário começou bem. Numa escola particular, porém de má reputação e numa parte menos afluente de uma cidade pobre. No início minha mãe me levava todas as manhãs, no fusquinha azul que depois foi roubado. Mas mesmo antes de alguém arrombar o portão da casa e levar o carro (sob as barbas do cachorro adormecido que depois, segundo meu pai, não teve sequer a decência de aproveitar o portão aberto pra fugir) eu já tinha começado a dar meus primeiros passos solitários no mundo. Deixava com sacrifício o casulo de cobertores e caminhava o quilômetro que me separava da escola com sapatos de fivela, saia plissada, blusa branca de tergal e o emblema do Centro Educacional pregado à mão no bolsinho.
Exceto quando chovia. Aí eu ganhava carona, pois a rua da escola virava um pântano com a lama que descia dos barrancos. E as crianças que moravam neles desciam junto porque precisavam estudar pra que um dia, quem sabe, pudessem deixar aquele lugar no passado. Desciam quase da mesma cor do barro, as calças respingadas de lama, os pés dentro de sacos plásticos presos com elástico para não sujar os sapatos, preciosos por serem únicos.
Karla Danielle era a típica gatinha da classe: alta, longos cabelos castanhos e um sorriso eternamente iluminando o seu rosto bonito. Um dia me defendeu de outras meninas prestes a me excluir de uma brincadeira no recreio: “o elástico é meu e ela é minha amiga, vai brincar sim!”. Fiquei surpresa pois há tempos a gente não comia merenda juntas, o que me fez concluir que talvez já não fôssemos mais tão amigas assim. Pais separados, ela morava com a mãe e o irmão caçula numa casa amarela de esquina, perto da minha. Eu a chamava para tomar banho de piscina; ela entrava na água e submergia inteira antes do cabelo (os fios oleosos ficavam boiando). Engravidou cedo, ficou menos bonita e mais triste com a idade. Mas da última vez que a vi ela estava empurrando a segunda filha numa bicicletinha de criança, num daqueles sábados onde a prefeitura fecha o trânsito das ruas para o lazer dos moradores. Me viu de longe e me jogou um beijo. Nem tive como agradecer depois pela gentileza de me oferecer, no meio de tantas mudanças na minha vida e na dela, o mesmo sorriso de sempre.
Renata (ou Renatinha, por conta do tamanho) era a líder nata. Óculos, feições asiáticas, “cara de fuinha” segundo a crueldade da minha mãe. Autoritária, mentora de planos mirabolantes, representante de turma, juíza de brigas e pendengas, ela sempre tinha o que dizer e, vindo dela, tudo era importante. Um dia correu o boato de que ela estava com piolho. Depois das lendas criadas por adultos para aterrorizar os pequenos de que “piolho se trata raspando a cabeça!”, as outras crianças mantiveram uma distância segura. No dia seguinte ela apareceu com o cabelo cortado curto, bem curtinho mesmo, mais curto ainda que o do irmão gêmeo, Fabiano, que estudava na mesma classe e tinha o cabelo num corte tigelinha. Mas como se tratava da Renata ninguém teve coragem de tocar no assunto. Ela também nunca disse palavra, embora vez por outra levasse as mãos até a nuca como se esperasse encontrar um rabo de cavalo ali, para então recuar desconcertada. E o cabelo curto da Renatinha se tornou assunto banido sem que ela precisasse pedir, nem mesmo reconhecer o respeito implícito no nosso silêncio.
O Ivan era um loirinho bochechudo, com cara de alemão de meia idade, olhos verdes miúdos, bastante tímido e que sentava na lateral direita da sala de aula – me surpreendo por lembrar disso até hoje. Ele usava uma camisa uns dois números abaixo do que devia e a barriga estufava os botões quando ele sentava. Até o sapato era de adulto, numa época em que praticamente todos os meninos (e as meninas não adeptas do sapato boneca) usavam tênis. Nada de bullying, no entanto. Ele era apenas diferente e isso não era considerado um crime. O Ivan me deu uma bolinha de naftalina dizendo que era bala, e eu aceitei e pus na boca. Ele foi parar na sala da diretora, meio perplexo porque “achei que ela fosse perceber”. Bom, eu só percebi que era meio burra (e esfomeada). Um dia em que minha mãe viria me buscar mas se atrasou, eu e o Ivan ficamos sentados no pátio da frente da escola, dividindo com precisão quase aritmética o conteúdo de um pacote de biscoitos (dessa vez eu averiguei) e discutindo algo muito importante até o fusca azul aparecer na esquina.
A Luciana era a gordinha que sempre tinha as coisas mais legais. Nos anos 80 ter um estojo de canetinha com 72 cores era garantia de popularidade. Cá pra nós eu achava um desperdício, já que ela não sabia usar; ignorava o seu (também fenomenal) kit de lápis de cor e usava as canetinhas pra pintar. Eu quase infartava vendo a a Leila forçar a ponta da hidrocor no desenho manchando a parte de trás da página. Poucos tempo depois do começo das aulas metade das canetinhas já estava falhando e logo era preciso comprar outras. Uma vez ela me deu as canetinhas do estojo velho que ainda estavam boas. Pediu que eu abrisse as mãos, despejou as canetas e saiu sem dizer nada. Além desse momento, que eu nunca soube explicar direito, nós nunca fomos especialmente amigas. Mas concluí que existem vários talentos no mundo e que não há nada de errado em não dominar alguns.
A Elaine parecia uma boneca de porcelana, na beleza e na fragilidade. Cabelo loiro curto e encaracolado, rosto melancólico e pálido, olhos claros enormes e fundos e a saia um tanto longa demais. Sempre muito bem comportada, tirava boas notas, usava bolsa tiracolo ao invés de mochila e falava baixo. Tinha sempre no pescoço um cordãozinho fino (“é ouro de verdade”). Jamais corria no recreio e se cansava nas escadarias. Um dia passou mal na aula e então apareceu na escola uma moça bonita, pálida e melancólica, que pegou a Elaine pela mãozinha branca e levou embora. Ela não veio estudar no dia seguinte, nem no outro, nem na outra semana. Mais tarde algumas crianças ficaram sabendo pelas mães que a Elaine ia ficar um tempo afastada. “Que sorte!” pensamos nós, invejando as semanas extras de férias. Só que as semanas viraram meses. Elaine nunca mais voltou para a escola. Nem para a nossa, nem para nenhuma outra.
Clayton era o arquétipo do moleque insuportável. Dentuço, tinha um cacoete que o fazia estalar os lábios constantemente, o que eu achava irritante e meio ridículo. Ele também balançava a cabeça para trás e para a frente, num movimento parecido com o que certas aves aquáticas fazem ao andar – o que lhe garantiu o apelido de Ganso. Clayton colava chiclete na cadeira da professora, falava palavrão, se metia em brigas e usava espelhos pra tentar ver a calcinha das meninas. Hoje penso que o mau comportamento tenha sido a maneira que ele encontrou de se colocar acima das gozações que sofria. Ele sentava atrás do Ivan, e apesar do contraste de personalidades, eram os melhores amigos. Certa vez ele fez uma piada comigo e eu respondi “legal você fazer com os outros o que não gosta que façam com você!” e ele ficou um tempão calado como se examinasse a própria consciência.
Michel era o Pequeno Príncipe. Saído das páginas do Exupery. Bonito e estudioso, mas nada sociável. Ele tinha uma daquelas réguas paraguaias made in taiwan, com desenhos que se moviam. As meninas eram fascinadas por ele. Eu era fascinada pela régua. As mais afoitas puxavam papo (que ele retribuía com grunhidos) ou penteavam seus cabelos com os dedos (que ele retribuía com um empurrão). Insuportável. Jurei jamais lhe dirigir a palavra. E assim foi, até o dia em que ele chegou atrasado e sentou na única cadeira disponível – do meu lado. Foram dez minutos de desconforto até que a lâmpada se acendeu: aproveitando a proximidade pedi a borracha emprestada (não tive coragem de pedir a régua). “Péra”, ele disse. E me entregou assim que terminou de usar. O sucesso inesperado alimentou minha coragem: “err… a régua também?”. Ele levantou os olhos do caderno e me olhou e eu achei que fosse virar pedra. “Tá”. Peguei. E perdi vários minutos girando a dita cuja nas mãos, vendo as princesas, pôneis e florzinhas se mexendo no fundo cor de rosa, e de repente me ocorreu: “a sua régua é de menina”. Ele me olhou meio espantado, meio puto. Eu comecei a rir. Ele me tomou a régua, mas riu também. E no meu aniversário de 15 anos comeu pipoca e bebeu guaraná na minha sala.
Mas no último ano do primário alguma coisa aconteceu. Deve ter acontecido, não lembro. Só sei que de repente me vi sozinha, sem amigo nenhum a não ser a Claudinete. Que quase não ia à escola; dava o ar de sua graça umas três vezes por semana. Eu não sabia então, mas fiquei sabendo depois que seus pais estavam tendo dificuldades para pagar a mensalidade. Eu ficava perdida quando ela não aparecia. Todos os dias chegava cedo, me instalava na cadeira e ficava encarando a porta. E era como se um rebanho de mamutes tivesse se levantado das minhas costas quando a cara morena, o cabelo curto e crespo e os braços magros segurando um caderno e um estojo de pano (Claudinete não tinha mochila) entravam por ela. Mas as entradas iam rareando cada vez mais e se tornavam cada vez mais frequentes os dias em que eu esperava em vão, a ansiedade escalando velozmente cada minuto. Quando a professora por fim se sentava iniciando os trabalhos do dia, eu dava a esperança como perdida. Lembro do dia em que um tempo depois do começo da aula, já absorta na leitura, senti a mão magra e gelada da minha amiga apertar o meu ombro. Claudinete desabou na cadeira, sem fôlego pela corrida para compensar o atraso, sem saber que me salvava a manhã com seu riso de dentes grandes e brancos.
A ele seguiram-se várias semanas de sumiço absoluto em que fui aos poucos me dando conta de que ela não ia mais voltar. Não voltou. Depois de me conformar eu aceitei meu destino: passar o recreio sozinha na sala de aula ou descer e vagar invisível pelo pátio, pisando incerta o chão de pedrinhas, vendo a infância dos outros acontecendo e com a sensação resignada de que a minha estava prestes a acabar.
Mudei de escola no ano seguinte.

Lolla, 7, pronta para entrar no palco na festa junina do Centro Educacional.