Adaptações.

A gata vomitou no tapete de entrada depois de ter comido grama no jardim. A casa pode se considerar batizada.

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Um dos percalços de morar em Londres é ter que reciclar lixo. Dane-se minhas credenciais ecológicas; sei que é necessário mas acho um saco ter que categorizar cada coisa que descarto. E devo me considerar com sorte porque esta área em particular não é muito estrita e não vou ter que separar os envelopes com e sem “janelinha”, ou papelão com e sem aquele filme plástico finíssimo por cima. Em Jersey só separávamos o vidro do resto do lixo. Mas em Jersey tem menos gente. Com todas as vantagens e desvantagens que isso acarreta. Fair enough.

Aqui reciclamos garrafas plásticas (só garrafas – potinhos de iogurte e outros tipos, não), latinhas de alumínio, garrafas/potes de vidro (só esses; vidro quebrado, não), papel e papelão (incluindo papel cartão, caixas de cereais, etc). Todos esses devem vir separados do resto do lixo – e às vezes é difícil saber o que é o “resto” do lixo. O problema é que deveria haver uma caixa de reciclagem, que é fornecida pela prefeitura, nesta casa. Ainda não a encontrei e terça de manhã foi dia de coleta. Ou seja, vai ficar tudo pra semana que vem.

A cozinha é pequena e o espaço foi mal aproveitado; ter que achar lugar no chão para separar lixo por categoria vai ser um desafio. Oh well. Pequeno preço a se pagar pra poder fazer as compras de mês no Tesco Extra e encher a casa de Ikea, eu acho.

Comprei uma ciabatta no Waitrose e achei meio ressecada, mas ainda assim melhor do que todas outras ciabattas que já provei. O que só demonstra que eu nunca tive muita sorte com ciabattas.

Também do Waitrose veio esse bolo de banana com cobertura cremosa e açucarada de maracujá (os pedacinhos de semente crocantes são um plus) que é excelente. O chá é de morango & manga da Twinings, e esse foi o meu café da manhã.

Comprei quase nada em termos de comida para a primeira semana. Duas latas de sopa da Baxters, duas latas de spaghetti à bolonhesa (é, eu sei…), a ciabatta, fatias de frango assado, duas refeições de microondas que vão ao forno e que eu certamente não vou preparar, um barril de coca cola, biscoitos TUC e um potinho de Boursin. Não estou animada a usar forno/fogão, porque não estou bem certa de que estejam funcionando bem e prefiro passar meus primeiros dias aqui sem traumas. Estou com nojinho de usar as panelas, pratos, copos e talheres da casa. Mais ainda depois que puxei uma colher de pau de dentro do pote de utensílios e ela estava coberta por uma camada grossa de comida ressecada, sabe-se lá há quantos meses. Ew.

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O “jardim” é um paraíso de insetos voadores minúsculos, cuja classificação ainda não consegui descobrir (torço muito para que não sejam mosquitos). Me sento no estúdio à tarde, e pela janela que dá para os fundos fico observando a dança dos pequenos sob aquela luz mágica vespertina. Gosto de pensar que são pequenas fadas retornando para suas casas nas árvores depois de um dia de trabalho na floresta.

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Meio bagunçado e caótico mas foi o que deu pra fazer em três dias – incluindo duas visitas à Ikea, porque praticamente nada aqui veio de Jersey (exceto a cadeira e a cômoda grande). Ainda vão entrar mais prateleiras nas estantes e na parede. Minha caminha nem pôde pensar em vir. Ficou do outro lado da poça e só virá com a mudança quando finalmente tivermos um endereço definitivo.

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Chamei de “jardim” entre aspas porque não tem uma única flor plantada aqui. O jardim nos foi entregue em estado lastimável. Não temos grama e sim um matagal baixo, navegado com prudência pela Chantilly. Plantas mortas (ou à beira da falecência), arbustos crescendo desordenadamente, restos de hera ressecada subindo pelas paredes, alguns punhados de urtiga – e devido à posição da casa, sol que é bom, muito pouco.

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E acabei de perceber que o aspirador de pó da casa ou não funciona ou está com a “bolsa” cheia. Não há palavras no léxico para descrever o quanto detesto ter que limpar bolsa de aspirador de pó. Mas isso ainda seria melhor do que ter que comprar outro ou esperar até a próxima vez que Respectivo atravesse o canal de carro para trazer o nosso.

O carpete está sujo. O leite estragou. Acho que vai chover. Estou com saudade dos meus gerânios. Me pergunto o que a Maluca estará fazendo a essa hora. Não consigo achar a chave da garagem. Tenho medo que uma raposa jante a Chantilly. O gato da vizinha fez cocô na minha grama. As janelas desta casa são pequenas e os cômodos escuros.

Pelo menos não falta vista verde na janela. E sem a sensação de isolamento, não me sinto mais como se o resto do mundo fosse uma festa para a qual eu não fui convidada. Mas agora é hora de ligar a chaleira e pôr no prato a última fatia de bolo. The invitations can wait.

Shedding skins.

Na última noite como residente em Jersey fiz algo que há tempos não fazia – molhar meus pés no mar. Observei a maré subir na minha praia preferida (pequena, pitoresca, um mix de areia e pedrinhas frequentado quase que exclusivamente por gaivotas e patos) e me cobrir os pés, e depois os tornozelos, e depois quase até os joelhos enquanto um sentimento inexplicável de gratidão aliviava a sensação de nostalgia antecipada.

Na última manhã, enquanto eu procurava desesperadamente por mais caixas para abrigar o resto do mundo que estava transportando para o outro lado do canal, a porta azul aberta trazia para dentro da casa o canto dos pássaros, o zumbido dos insetos, o cheiro enjoado do honeysuckle e a primavera através das cores das folhas que acabavam de nascer novamente.

Minha relação com esse lugar foi um mal entendido desde o princípio. Seis anos de clausura no paraíso e agora eu tenho a cara de pau de ir embora sentindo que não me despedi direito. Pieguice de última hora, apego ao conhecido ou simplesmente amor aprendido pelo impacto do silêncio, o contraste entre a natureza quase intocada e a beleza obsessivamente cultivada e condensada em poucos quilômetros, esse vento constante que nunca me deixou sentir calor totalmente nesse lugar estranho, que não é exatamente um país mas não faz parte de nenhum outro. Que não é como nenhum outro.

Vou nos poupar das minhas analogias pseudo poéticas. Vou fechar essa porta, terminar o meu chá e voltar para as caixas.

Asleep.

sing me to sleep
sing me to sleep
i’m tired and i
i want to go to bed

sing me to sleep
and then leave me alone
don’t try to wake me in the morning
‘cause i will be gone

don’t feel bad for me
i want you to know
deep in the cell of my heart
i will feel so glad to go

there is another world
there is a better world

“well, there must be.”

St. Saviour’s cemetery, Jersey.
Lyrics: Morrissey