Things I want.

Ir para a velha casa no número quatrocentos e trinta e três da rua Otávio Ascoli no Bairro Centenário e ouvir o elepê dos Secos & Molhados no stereo da mamãe comprado em meados dos anos 70, dançando El Rey.

Eu vi El Rey andar de quatro,
de quatro patas reluzentes.
E quatrocentas mortes…

E comer pão com mortadela domingo de manhã lendo jornal que o pai trouxe pra você na cama – e de “sobremesa” o bolo da festinha de aniversário da noite anterior, geladinho da geladeira, os docinhos grudando na forma. E assistir corrida do Ayrton Senna e depois ir brincar de Barbie na varanda.

Tomar banho de latão no corredor atrás da casa, no verão, submergindo e prendendo a respiração até não aguentar mais e, durante o período, fingir estar a) na barriga da mãe; b) numa câmara criogênica ou c) num latão de água gelada mesmo; às vezes o sonho não é melhor que a realidade. Tomar banho de mangueira no quintal, correndo atrás das outras crianças e escorregando na grama, lavar as bonecas no chafariz (um chafariz! A minha cabeça de adulta pensa no desperdício de água enquanto a de criança só queria saber dos arco íris que se formavam com a luz do sol encontrava a água e dos pardais vindo tomar banho e matar a sede).

Passar a tarde saboreando uma lata de leite condensado, deitada na rede, ouvindo os programas de flashback da rádio Mundial AM, ou o paradão da Transamérica, ou as cafonices da 98FM e sair correndo quando a música favorita de semana começava para tentar gravar numa fita cassete velha e reciclada mil vezes. Ou no quarto sentada na cama, ar condicionado ligado, a luz entrando pelas cortinas abertas com o sol de verão torando lá fora, arrumando a pasta de papel de carta ou ouvindo Smiths e cantando junto com as letras no encarte. Viajar para a casa da avó da B. em Santa Cruz e, depois de horas sacolejando num ônibus, encontrar tempo nublado, chuva fina, a casa escura e a biblioteca enorme com a coleção completa dos “clássicos da literatura da editora abril” e achar esse o melhor programa que o mundo poderia oferecer (e à noite ir para uma “danceteria” obscura cheia de gente estranha e ficar até o dia clarear).

Passar a tarde se escondendo das visitas embaixo da cama, especialmente se alguém tivesse tido a genial idéia de pôr bobs no cabelo. Montar casinha com as amigas no quintal, cada uma trazendo uma sacola com bonecas e brinquedos; jogar tudo às pressas na caixa enorme de papelão se começasse a chover e sair correndo e gritando na chuva com medo de molhar a caixa.

Tomar banho de chuveiro olhando pela janela as árvores balançado na ventania e sair enrolada na toalha, cabelo pingando, talco no pescoço, e sentir o cheiro do molho de cachorro quente no fogo. Comer o cachorro quente, ainda enrolada na toalha, sentada na mesa da varanda, copão de coca cola do lado, assistindo a ventania trazer a chuva e só entrar depois que a mãe chamasse, com medo dos relâmpagos.

Alugar fita “adulta” na locadora depois da escola e assistir com as amigas comendo pipoca e com um olho na tela e outro no portão vigiando a chegada dos adultos, e puxar a tomada da televisão se eles já estivessem perto demais. Ir ao cinema chupando balas de maçã verde para ver o Daniel San e os Trapalhões. Fazer a brincadeira do livro e da tesoura chamando os espíritos, e se reunir na calçada à noite para contar histórias de terror. Fazer fogueira na rua no inverno e assar (queimar, na verdade) batatinhas e salsichas roubadas da geladeira.

Sair domingo de manhã com o pai para ir à feira e comprar peixe e legumes e revistas da Disney e fazê-lo comprar um disquinho de historinhas infantis e também biju, pra comer em casa depois de passar manteiga e vê-la derretendo aos poucos e se afundando na massa. E montar a piscina no fundo do quintal e ficar de molho nela com as amigas até que os dedos enrugassem e a tarde caísse esfriando a água, ouvindo o barulho do ar condicionado no corredor atrás da casa e discutindo a viagem para a praia no dia seguinte bem cedinho. Acordar no dia seguinte bem cedinho, encher o isopor de refrigerante e pegar a estrada, parando no caminho pra comprar cocada com leite condensado.

Sábado à tarde se enfiar com a turma no Monza velho do pai de algum deles e rumar para o Tivoli Park da Lagoa, e passar a tarde fingindo estar na Disney, provavelmente mais feliz do que se estivesse na Disney. E cantar durante toda a viagem pela Avenida Brasil, enlouquecendo o motorista e se divertindo tanto quanto se já estivéssemos lá. Fazer uma cama no chão do quarto à tarde, bem embaixo do ar condicionado, se cobrir até a cabeça com o cobertor de lã mesmo que fosse verão e ouvir programas de batidão e charm no radinho de camelô e rir das letras e cantar junto até a mãe vir perguntar o que diabos era aquilo. Ser musa de uma rádio pirata por duas inesquecíveis semanas.

Esperar pelo Natal e sonhar com uma árvore decorada de bolinhas frágeis de vidro colorido e festão (“cabelo de anjo”, como a mãe falava), assistir encantada a todos os especiais natalinos na TV e antecipar o dia vinte e quatro trazendo a cozinha numa festa de cores, barulhos e cheiros, as fatias de pão de rabanada de molho, o termômetro do frango pulando no forno e o cheiro de detergente e água quente da mãe lavando as assadeiras. Ajudar a picar batatas para a salada, comer mais bolinhos de bacalhau do que deveria, ouvir os fogos, dormir depois do especial da globo e acordar no dia 25 para ver os presentes e sair pra rua com eles e mostrar para os amigos.

Ir para a escola de fusca azul, e pular por cima das poças de lama até chegar na calçada e ir direto para a cantina comprar paçoca antes de começar a aula e ir sentar no fundo da sala para comer escondido da professora. E rabiscar letras da Legião Urbana à lápis na carteira e esquecer e deixar o braço em cima e voltar para casa com a letra “tatuada” na pele. Usar laços de tule no cabelo, responder cadernos de perguntas e mentir na resposta a “você gosta de alguém?” e tirar o kichute para pular elástico nas fases mais difíceis e beber refresco quente na garrafinha da merendeira e ter orgulho do estojo de canetinha com 36 cores e detestar quando a menina rica da sala aparecia com um de 48 e pedir material emprestado do menino bonito só para poder falar com ele.

Pés descalços, arranhões, pique esconde, sorvete pingando, cheiro de chuva, barulho de chuva, tomar banho de chuva, canção de ninar, férias na praia, nariz descascando, redemoinhos no campo, passeio da escola, queda de bicicleta, festa junina, pedaço de maçã do amor grudada no dente, sacos de pipoca é amor, gentileza gera gentileza no muro do viaduto, rainha da primavera, lamber a bacia da batedeira, soprar velas e encher balões, comprar balas na barraquinha, apostar corrida, brincar de queimado, brincar de comidinha, se encantar com tudo o que é simples e não perceber que o tempo corre. Mas ele corre, e rápido, e um dia você percebe que também está correndo – atrás da felicidade que um dia teve nas mãos.

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