Há uns bons anos atrás eu tinha uns 15 e estava dentro de uma papelaria no shopping com o meu então namorado. Papelaria essa já famosa entre as minhas amigas (maníacas por papel de carta e canetas da Hello Kitty, como eu) porque tinha os vendedores mais carrancudos e antipáticos, que te fazem crer que sorrir dá câncer. Então lá estava eu, com uns três ou quatro pacotes de coisinhas nas mãos, percorrendo prateleiras com os olhos quando percebi que uma das vendedoras me seguia pela loja. Como eles não trabalham por comissão (o esquema é pegar na prateleira e pagar no caixa) aquela “atenção” só podia vir de um lugar: a suspeita de que eu pretendia sair sem pagar.
Ok, santa nunca fui. Confesso uns dois ou três micro furtos (balas e cartelas de adesivos) na infância numa filial das Lojas Americanas da minha cidade para poder sair rindo, me achando muito esperta e contar para as amiguinhas da escola – que tinham feito o mesmo. Uma espécie de rito de passagem para a adolescência, do qual nunca me senti particularmente orgulhosa; daí não ter perseverado na prática. Apesar de essas infrações do passado não estarem escritas na minha testa, eu estava então passando perto da porta (e o que eu trazia nas mãos não tinha tag eletrônica e não iria “apitar” se eu tentasse sair), “justificando” a atitude daquela senhora, que não se dava sequer ao trabalho de disfarçar com um sorriso quando nossos olhos se cruzavam. E não pude deixar de perceber que, entre os clientes da loja que NÃO estavam sendo seguidos, não havia nenhuma moreninha mal vestida.
Verão no Rio de Janeiro. Short, camiseta e chinelo. Eu entrei no Rio Sul pra matar a vontade sazonal daqueles “sundaes” horríveis com gosto de xarope do McDonalds. O namorado, que detestava shoppings e McDonalds e tinha protestado em vão, agora estava ali na mesma loja, pesquisando miniaturas sem ser perturbado ou seguido. Short, camiseta e chinelo também, mas branco, cheirando a perfume caro e um metro e noventa de altura ele podia vestir e fazer o que quisesse. Como de fato fez: assim que percebeu o mesmo que eu tinha percebido (prova de que eu não estava delirando), foi até à vendedora e quis saber por que ela estava me seguindo. E completou com a frase arrogante e que me fez, apesar de tudo e até hoje, corar de vergonha: “o limite do cartão de crédito dela é maior do que o seu salário num ano”.
Blefe, é claro. Eu ia pagar pelos papéis e canetas com o dinheiro, porque o meu primeiro cartão de crédito, com um limite SUPER modesto, só veio anos depois quando eu finalmente pude abrir uma conta universitária. O cartão com limite alto era o dele. Que me pegou pelo braço e me fez sair da loja, do shopping e fomos parar num boteco. Pela irritação no seu rosto eu compreendi que preconceito era até então uma coisa que só acontecia com os outros, e não com alguém próximo. Acredito mesmo que tenha sido a primeira vez que ele presenciou tal coisa de perto, e que o incidente tenha deixado lembranças e lições em ambos, ainda que diferentes.

Por que estou contando tudo isso? Porque ontem senti vontade de usar aquela inesquecível frase arrogante de novo, quando dentro de uma filial da Accessorize, uma vendedora que antes apenas me observava à distância passou a me seguir pela loja. Eu tinha apenas um beret de tricô e uma pulseirinha vagabunda nas mãos, por isso considerei desnecessário pegar uma cesta enorme e ter que transitar com ela por uma loja lotada. Achei engenhosa a forma como ela sempre dava um jeito de ficar entre mim e a porta de saída. Achei corajosa a atitude de não retribuir o sorriso que dei (para tentar desarmá-la) e continuar a me seguir. Achei triste que eu tenha sido a única escolhida, entre as muitas mulheres que perambulavam pela loja, para ser vigiada de perto. Tênis, jeans e um tricot da Zara. Mas ainda diferente. Ah, isso não muda.
Ontem eu provavelmente não estaria blefando se dissesse que o limite do meu cartão de crédito (ok, vá lá – adicional) era maior que o salário anual dela. Vendedoras de loja, mesmo aqui, ganham pouco – principalmente as mais jovens. Mas acredito que certas lições chegam na hora certa pra todo mundo e decidi que o racismo, a grosseria e o preconceito que eu considerava lamentáveis naquela pessoa não iriam encontrar ressonância nas minhas atitudes. Se ela tiver que aprender um dia a ser mais tolerante, não seria a minha intolerância a ensiná-la.
Paguei minhas comprinhas no caixa, vesti meu beret novo e fui tomar um cappuccino.