Atire a primeira pedra…

…quem nunca teve uma paixonite de ginásio.
Eu tive. Não só uma, como várias. Bem depois dos meus colegas de classe, é verdade; até então acompanhava com certo interesse a fogueira que os consumia e, paciente, esperava pela minha vez, me perguntando qual dos espinhentos magricelos do segundo grau seria o merecedor dos meus suspiros. Porque ter crushes era hype.

Ocorre que 99% dos meus interesses não eram genuínos e, como eu não conseguia me interessar de verdade por ninguém, era cara-de-pau o suficiente para pegar carona nos crushes das amigas. No fundo, achávamos a coisa toda mais divertida do que romântica, e do alto dos nossos doze anos caíamos na risada quando algum deles passava por nós. Bom demais inventar apelidos monstruosos para os meninos, de acordo com certas características físicas ou falhas de caráter. Assim surgia o “alemão”, o “prestativo” e até mesmo o “ovo gorado de galinha preta” (don’t ever ask).

Mas no fundo eu considerava aqueles altões, morenões, desfilando bíceps e barrigas tanquinho nos shorts de educação física, uma coisa muito fora da minha realidade e pela qual eu não tinha muito interesse. Eu nem saberia o que fazer com um daqueles, sinceramente. Não, na boa – a gente faz o quê com um homem desses aos 12 anos?? Coloca dentro de um armário de vidro e fica admirando? Faz fotos de nu artístico (ou não) e vende para as amiguinhas na hora do recreio? Pede pra ele espancar aquele moleque chato que vive puxando o seu cabelo? Não, por favor, não sugiram sujidades de cunho sexual porque, aos doze, Christiane F eu não era, só tinha Barbies na cabeça e não tava podendo.

Então, nesses termos, analisei as opções que me restavam e, já que tava na moda, acabei tratando de me “apaixonar” por uma coisa mais próxima do meu universo – e que mais parecia um híbrido de cofre de porquinho + coelhinho de pelúcia. O Henrique devia ter uns 13 ou 14 anos, cabelos castanhos cacheados, era dentuço (daí a alusão ao coelho), estava acima do peso (porquinho) e vivia com o traseiro saindo por cima do cós da calça (cofrinho). Em defesa do infeliz, digo que ele tinha um par de olhos verdes-farol que paravam o trânsito ao invés de abrir. E lá ficava eu, da sacada do terceiro andar do prédio da escola, meus ansiosos olhos castanhos procurando o balofinho enquanto as amiguinhas se derretiam feito sorvete na praia pros gostosões em seus jeans apertados.

Um Dia a Débora, moreninha de óculos, cabelo curtinho e fofoqueira que só, veio me perguntar qual era a graça em passar o recreio inteiro colada na grade. No melhor espírito “se não puder contar pras amiga não vale a pena” eu procedi a despejar a história completa. Até porque na minha alucinação eu achava que o moleque era realmente uma graça e a Débora ia tipo, totalmente concordar comigo, se apaixonar também e passaríamos a dividir o posto de “gordinho watcher” na hora do lanche; true love knows no jealousy. Só quando ela caiu no chão se contorcendo de rir – acho até que estirou um músculo, nesse dia – eu percebi que afinal talvez não tivesse sido boa idéia revelar o alvo do meu afeto. Fiz a infeliz jurar pela mãe, pai, todos os parentes já mortos e que ainda nem haviam nascido, que ela ja-mais contaria aquilo pra alguém.

Desnecessário dizer que no dia seguinte ela contou pro moleque.

Hora do recreio, eu toda faceira com o meu laçarote de tule no cabelo (anos 90 – favor me absolver), me acabando na coxinha com coca cola, ergo os olhos e me deparo com o dentuço vindo na minha direção, exibindo não apenas os incisivos gigantes, mas TODA a arcada dentária. Rindo arreganhadamente. Atrás dele vinha a débora, também mostrando a gengivas – até que os olhos dela encontraram os meus, muito sérios, quase assassinos. A pequena salafrária sentiu o perigo no ar, engoliu os dentes e deu meia volta. “V-a-g-a-b-u-n-d-a“, pensei eu.

Enquanto eu bolava maneiras demoradas e sanguinolentas de dar cabo da linguaruda, o coelhão supernutrido sentava-se no banco ao meu lado. É claro que ele tinha gostado da notícia. Eu não era nenhuma rainha da festa de formatura, mas nós estamos falando aqui de um membro do clube de “pega ninguéns” oficial da escola. O moleque estava num estado de felicidade palpável (de novo, favor não imaginarem além da conta).

“Oi me disseram que você é a fim de mim?”. Assim, na lata. E meio com cara de pergunta, que era pra forçar uma situação. “F-i-l-h-o-d-a-p-u-t-a“, pensei eu. E enxuguei o catchup da cara, pra evitar os olhos verdes enfiados em mim.

“Quem disse isso?”, perguntei, disfarçando para ganhar tempo, já que eu sabia nome, sobrenome e endereço da dedo-duro.
“Eu prometi que não ia falar. Mas olha, anota aí o meu telefone”.

Tipo eu-não-estou-acreditando que minha caneta está tipo saindo da minha mochila e eu estou aqui anotando o telefone do bolo-fofo na contracapa do meu caderno de biologia (sintomático). E não acredito que a minha mão NEM TREMEU, sabe. Deve ser o choque. O pior de tudo foi confessar pra ele que EU não tinha telefone (de verdade). A vergonha de ser uma excluída das telecomunicações foi maior do que as supostas borboletas que deveriam estar dançando na minha barriga – nope, só coxinha mesmo, thanks. Ele tagarelou durante metade do recreio, se despediu pedindo que eu ligasse “pra conversar mais tarde” e me estalou um beijo molhado na bochecha que me fez ter vontade de trocar de identidade com aquela barata subindo ali na parede. Oquei, ninguém podia chamar o pequeno batráquio de tímido. “Quando se está na seca não se tem tempo para formalidades”, concluí.

“E ó, tem mais catchup na sua cara. Aqui” e LIMPOU.
Fiquei mais verde que os olhos dele. Náusea. À distância, Débora e Luciana tinham cólicas de tanto rir. V-a-g-a-b-u-n-d-a-s.

Desnecessário dizer também que eu passei os próximos três dias ocupada demais lavando a bochecha com água fervendo e me escondendo no banheiro pra fugir do pretendente; não liguei e, no quarto dia, o dentuço despontou no pátio de mãos dadas com uma loirinha de farmácia (o subúrbio começa a produzi-las cedo), de pernas finas e mochila jeans cheia de buttons com desenhos de folhinhas de maconha, caveiras fumando e o “A” de anarquista.

Roqueira wannabe“, pensei eu. “V-a-g-a-b-u-n-d-a!” condenaram Débora e Luciana, e demos as costas de nariz pra cima, porque eu não ia brigar com a minhas amigas por conta de um dentucinho gorducho. Por mais que ele tivesse lindos olhos verdes. Lindos mesmo. Droga.

“O fenômeno se verifica na prática”, disse o Fernando ao ouvir a história dias depois, do alto da sabedoria que somente a testosterona (e alguns chutes na bunda) fornece aos meninos. “Assim que o pega-ninguém acha que tem mulher chovendo na horta, ele se transforma. Auto confiança atrai mulher, sabia?”.

Tô sabendo.
Se atrair HOMEM também, me vê duas dúzias e põe na conta, faz favor.

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