Domingo. Nove e meia da manhã e a campainha toca.
Nem preciso atender o interfone pra saber. Não é meu pai, não é nenhum dos meus amigos que nem sonham em chegar na minha casa a essa hora. São as “amigas” da mamãe. Eu nunca gostei de gente enfiada na minha casa. Quando pequena tinha trauma das sextas-feiras, porque era o dia em que a faxineira vinha. E ela ficava lá, cantando louvores evangélicos, se enfiando em cada canto da casa, fuçando minhas bagunças embaixo da cama. Nesses dias eu ficava pela rua, para escapar do incômodo. Felizmente o delírio de classe média da minha mãe durou pouco e ela desistiu da idéia de pagar alguém pra lavar nossa privada.
Já a minha misantropia doméstica piorou com a idade. A casa onde moramos hoje não é grande, mas é suficiente para as pessoas que vivem nela. Mas quase sempre quando abro a porta do meu quarto, dou de cara com alguma dessas “amigas” sentadas no sofá da sala ou na minha cozinha. Eu sempre achei que era de bom tom ligar antes e marcar visita, mas a turma da minha mãe é adepta do conceito de “ir na casa da fulana almoçar” ou “tava passando aqui em frente e resolvi…”. Sabe como é.
Eu sei como é. Mas não gosto. As “amigas” da minha mãe, por exemplo, ficam sabendo a hora que eu costumo acordar (porque chegam antes, e olha que nem acordo tão tarde assim). Ficam sabendo o que eu costumo comer. Estou com bobs no cabelo, creme na cara? Elas vão ver. Estou com dor de barriga, estou deprimida? Elas vão saber. Passo o dia todo de camisola? Elas vão fazer piadinha não-solicitada a respeito. E a minha intimidade fica lá, exposta igual Renoir no Louvre, para a apreciação dessas malas-sem-alça-nem-simancol.
Por que eu coloquei o “amigas” entre aspas? Porque eu tenho razões pra desconfiar que essas pessoas não são amigas, apenas só voando em volta feito moscas para tirar proveito da bondade e ingenuidade da minha mãe. Elas estão sem dinheiro? A Maria empresta. Elas querem roupa nova, mas estão sem grana pra pagar? A Maria costura fiado, e cobra barato (quando cobra…), porque é “amiga”. Elas estão entediadas em casa, com problemas familiares, doentes? A orelha da Maria vira o Muro das Lamentações. Mas quando é a Maria que precisa de alguém, de alguma coisa, eu só vejo um monte de costas sendo viradas… Algumas dessas “amigas” até insinuam que presente gostariam de ganhar no aniversário. E a boba da minha mãe compra. No aniversário da Maria, entretanto, às vezes ela não ganha nem telefonema dessas mesmas… er… “amigas”.
Amizade tem que ser minimamente livre de interesses para merecer o nome. Que se dane se são ricos ou pobres, se podem pagar rodadas de cerveja ou se só têm dinheiro para dividir uma lata de coca cola comigo. Passaram no meu controle de qualidade e isso significa muito para eles e pra mim. Eu também tenho alguns “amigos-entre-aspas”, mas assim que começo a perceber interesse, despeito ou abuso, eu corto. Aqueles que só aparecem quando querem pedir algo emprestado ou se pendurar na internet. Os que “brincaram” de me chamar de caça gringo, os que passaram a me ignorar ou disseram “isso aí não vai durar”. Os que querem ficar enfiados aqui em casa o dia todo, e estão sempre atrás de colo, compreensão e assiduidade da minha parte. Esses não têm vida longa.
Porque eu procuro os meus amigos quando estou com saudades. Quando estou feliz e quero compartilhar (se estou triste fico na minha, porque só eu sei o remédio pras doencinhas da minha alma). Quando quero sair pra passear, quando um filme no cinema é a cara de um deles e eu convido para assistir comigo. Às vezes demoro a procurar, sim. Às vezes eles somem por meses. Mas nossa relação é baseada na qualidade, e não na quantidade. Ninguém aporrinha ninguém, porque tudo tem a dose certa. Sal, açúcar, remédio e até afeto.
Agora eu vou lá tentar tomar o café da manhã na minha cozinha. Isso se as “amigas” da Maria deixaram uma cadeira disponível para mim.